quarta-feira, 3 de maio de 2017

DIANTE DA MORTE EMINENTE, UMA CERVEJA



 Dino de Alcântara

Desde que Adão e Eva foram expulsos do Éden, depois de descobrirem o poder do pecado, o homem conhece as duas maiores forças do universo: a dor e a morte. Sem elas, o mundo seria uma incógnita. Humberto de Campos, no seu livro de O Monstro e outros Contos, narra  a criação do homem feita não por mãos divinas, mas por essas duas criaturas que se arrastavam unidas às margens do histórico Eufrates. Diante delas, o homem – recém-criado – parecia munido de todo o poder do universo, já que, com a morte por perto, não há quem fique imune a dor.
Sobre isso, conta-nos o viajante alemão Hans Staden, que ficou prisioneiro dos índios do litoral de São Paulo, durante nove meses na década de 50 do século XVI, que, mesmo para os índios, tão acostumados à morte, a passagem para o mundo dos espíritos era sempre acompanhada de muito choro, quase sempre das mulheres.
Ao longo dos séculos, mesmo com a evolução do poder da fé, o homem pouco mudou diante da morte: as lágrimas e o sofrimento marcam a vida dos que ficam em face da grande viagem do ente querido.
Porém essa regra tem suas exceções. No Cujupe, já do século XXI, Opídio deu uma prova inconteste da racionalidade (ou talvez uma outra palavra que valha) quando se viu diante da morte do pai. Todos estavam reunidos, filhos, noras e netos, quando o velho patriarca sofreu um abalo cardíaco tão forte, que imaginou ter chegado a sua hora. Com a mão direita sobre o coração, deu a impressão de que a situação era delicada. Foi levado às pressas para a cama com receio do veredito da inimiga maior da vida. Meia hora depois, Opídio, que assistira a tudo paralisado, viu quando entrou às pressas a agente de saúde do povoado para aferir a pressão e ver o que podia ser feito para salvar o patriarca. Mas nada expressou, apenas aguardou a situação. Como a medição da pressão acabou sendo demorada, Opídio foi até a geladeira e de lá retirou a mais desejada de todas as latas de cerveja, esbranquiçada pela baixa temperatura. Entretanto não abriu. Deteve-se para esperar o desfecho. Talvez o velho já saísse do quarto andando, rindo, contando histórias. Mas o que viu foi os irmãos saírem desolados. A agente de saúde cabisbaixa, triste, parecendo que ia anunciar a tragédia:
– Olha, o pai de vocês está morrendo. Vão lá tomar a última benção. Ele está se despedindo, dando o último suspiro.
Opídio, paralisado diante da eminente tragédia, tomou uma atitude brusca: abriu a latinha de cerveja e, sem que a tirasse da boca, em longos goles, tomou todo o líquido diante do espanto de todos. Ao terminar, já com o recipiente seco, ficou mais uma vez paralisado.  Só foi despertar da letargia, quando Caju saiu do quarto, gritando a todos que o velho estava melhorando, até falando já.
Quem passasse pelo caminho do porto, nesse instante, ouviria uma risada capaz de espantar curupira no Marindiua. Era Opídio extravasando sua alegria.

Um comentário:

  1. Esse conto tá maravilhoso. Viajei no tempo. Ainda ecoa em meus afinados ouvidos o estampido da abertura da lata de Kaiser.

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