Dino de Alcântara
Dizia o velho Ziquié que não se nega um armador de
rede nem para um cachorro, que dirá para um cristão. Embora não fosse exatamente
um seguidor do Messias, Mizoca acabou ganhando não só um armador, mas também
rede lavada, lençol, comida, café, merenda, etc. na casa do Mariano. Ainda que
contrariado, por saber que o menino não era exatamente um bom visitante, desses
que pedem para ajudar em tudo em casa, aceitou dar agasalho por uma ou duas
semanas. Sobretudo, porque fora um pedido de dois afilhados muito queridos:
Franciline e Zeca. No primeiro dia, houve má vontade de Mizoca. Tudo bem que
tinha pouca idade, apenas 11 anos, mas bem que poderia, na visão do anfitrião,
lavar ao menos o próprio prato. Não fez. Deixou tudo em cima da mesa. À noite,
diante de pouca comida, Mariano viu um hóspede faminto, devorando, com
voracidade de um abade, o camarão cozido. Durante à noite, mais de uma vez
viu-se obrigado a sair da zona profunda do sono por conta do ronco violento de
Mizoca. Tentou em vão colocar o lençol sobre o ouvido. O ronco era tão brutal
que ultrapassava até o mais grosso dos tecidos. No dia seguinte, o hóspede
pilhou uma penca de banana roxa, vinda do bananal de Pantaleão, e, com o auxílio
de uma cuia de farinha, devorou três unidades, deixando as mais “xoxinhas” para
o dono da casa. Na segunda noite, o mesmo problema. Da sala vinha um ronco
esquisito, semelhante a um bicho, capaz de fazer medo até ao mais corajoso dos
moradores do Cujupe. Na terceira noite, Mariano deitou-se depois das oito
horas, disposto a trilhar o sono dos justos até às cinco horas, sem
interrupção. Precisava desse descanso. Mas, às três horas da madrugada, acordou
com um pressentimento estranho. Parecia que o espiavam. Olhou para um lado e
outro do quarto. Nada. Não era possível. Pensou em fantasma. Fez o pelo sinal
da cruz. Disse um “te-esconjuro” seco. Mas a sensação estava presente. Foi aí
que teve a ideia de acender um fósforo. Pegou a caixa e riscou um palito.
Acendeu a lamparina, e de pronto clareou o quarto, chamado pelos mais velhos de
cambra – corruptela do vocábulo lusitano câmara (quarto de dormir). Elevou um pouco a chama. Nada. Não havia um
vagalume no quarto. Não era possível. Foi nesse que momento que ouviu um ruído
vindo de cima da parede. Entre a sala, onde estava a rede de Mizoca, e o quarto,
havia uma parede que não alcançava o teto. Havia um travessão de uma parede
lateral a outra, de maneira que ficava um vão entre o travessão e a cumeeira.
Mariano levou a lamparina para o alto e o que viu o deixou assombrado, com
batidas tão aceleradas no coração que teve um pavor horrendo. Pensou tratar-se de
uma congestão. Estava Mizoca escanchado sobre a parede como se estivesse
montado num dorso de um elefante. Perguntou o que ele fazia lá em cima da
parede. Mizoca não respondeu, mas fez um gesto que deu a nítida certeza de que
não habitava mundo dos cristãos. Pôs os dois dedos mindinhos na boca, cada um
de um lado extremo, puxando as bochechas para imitar a bocarra de um sapo. Os
dedos médios (pais-de-todos) ele encravou nas narinas. E os dois indicadores
(fura-bolos) ficaram nos cantos dos olhos, repuxando para esbugalhar bem a
vista. O rosto de Mizoca, que não tinha uma boa aparência, ficou semelhante a
um abantesma. Mas fez mais. Sem tirar os dedos da boca, das ventas e dos olhos,
colocou quase um palmo de língua para fora e, usando as cordas vocais, soltou
um ruído estranho: “uuuurrrrrr”. Mariano se benzeu mais uma vez e tentou
dormir, cobrindo-se todo, do dedão do pé à cabeça. Não conseguiu pregar os
olhos. Sem abrir as pálpebras, Mariano sabia que o “diabinho” estava escanchado
na parede no alto. Na manhã seguinte, lá estava Mariano na casa de Chico,
negociando com os parentes a “devolução” da visita. Só assim passou a dormir
tranquilo de novo.
Post muito bem feito, história magnifica que deve ser perpetuada.
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