sexta-feira, 26 de maio de 2017

MARIANO E MIZOCA COMO ASSOMBRAÇÃO



 Dino de Alcântara

Dizia o velho Ziquié que não se nega um armador de rede nem para um cachorro, que dirá para um cristão. Embora não fosse exatamente um seguidor do Messias, Mizoca acabou ganhando não só um armador, mas também rede lavada, lençol, comida, café, merenda, etc. na casa do Mariano. Ainda que contrariado, por saber que o menino não era exatamente um bom visitante, desses que pedem para ajudar em tudo em casa, aceitou dar agasalho por uma ou duas semanas. Sobretudo, porque fora um pedido de dois afilhados muito queridos: Franciline e Zeca. No primeiro dia, houve má vontade de Mizoca. Tudo bem que tinha pouca idade, apenas 11 anos, mas bem que poderia, na visão do anfitrião, lavar ao menos o próprio prato. Não fez. Deixou tudo em cima da mesa. À noite, diante de pouca comida, Mariano viu um hóspede faminto, devorando, com voracidade de um abade, o camarão cozido. Durante à noite, mais de uma vez viu-se obrigado a sair da zona profunda do sono por conta do ronco violento de Mizoca. Tentou em vão colocar o lençol sobre o ouvido. O ronco era tão brutal que ultrapassava até o mais grosso dos tecidos. No dia seguinte, o hóspede pilhou uma penca de banana roxa, vinda do bananal de Pantaleão, e, com o auxílio de uma cuia de farinha, devorou três unidades, deixando as mais “xoxinhas” para o dono da casa. Na segunda noite, o mesmo problema. Da sala vinha um ronco esquisito, semelhante a um bicho, capaz de fazer medo até ao mais corajoso dos moradores do Cujupe. Na terceira noite, Mariano deitou-se depois das oito horas, disposto a trilhar o sono dos justos até às cinco horas, sem interrupção. Precisava desse descanso. Mas, às três horas da madrugada, acordou com um pressentimento estranho. Parecia que o espiavam. Olhou para um lado e outro do quarto. Nada. Não era possível. Pensou em fantasma. Fez o pelo sinal da cruz. Disse um “te-esconjuro” seco. Mas a sensação estava presente. Foi aí que teve a ideia de acender um fósforo. Pegou a caixa e riscou um palito. Acendeu a lamparina, e de pronto clareou o quarto, chamado pelos mais velhos de cambra – corruptela do vocábulo lusitano câmara (quarto de dormir).  Elevou um pouco a chama. Nada. Não havia um vagalume no quarto. Não era possível. Foi nesse que momento que ouviu um ruído vindo de cima da parede. Entre a sala, onde estava a rede de Mizoca, e o quarto, havia uma parede que não alcançava o teto. Havia um travessão de uma parede lateral a outra, de maneira que ficava um vão entre o travessão e a cumeeira. Mariano levou a lamparina para o alto e o que viu o deixou assombrado, com batidas tão aceleradas no coração que teve um pavor horrendo. Pensou tratar-se de uma congestão. Estava Mizoca escanchado sobre a parede como se estivesse montado num dorso de um elefante. Perguntou o que ele fazia lá em cima da parede. Mizoca não respondeu, mas fez um gesto que deu a nítida certeza de que não habitava mundo dos cristãos. Pôs os dois dedos mindinhos na boca, cada um de um lado extremo, puxando as bochechas para imitar a bocarra de um sapo. Os dedos médios (pais-de-todos) ele encravou nas narinas. E os dois indicadores (fura-bolos) ficaram nos cantos dos olhos, repuxando para esbugalhar bem a vista. O rosto de Mizoca, que não tinha uma boa aparência, ficou semelhante a um abantesma. Mas fez mais. Sem tirar os dedos da boca, das ventas e dos olhos, colocou quase um palmo de língua para fora e, usando as cordas vocais, soltou um ruído estranho: “uuuurrrrrr”. Mariano se benzeu mais uma vez e tentou dormir, cobrindo-se todo, do dedão do pé à cabeça. Não conseguiu pregar os olhos. Sem abrir as pálpebras, Mariano sabia que o “diabinho” estava escanchado na parede no alto. Na manhã seguinte, lá estava Mariano na casa de Chico, negociando com os parentes a “devolução” da visita. Só assim passou a dormir tranquilo de novo.

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