segunda-feira, 8 de maio de 2017

O VELHO SERTÃO E SUA APOSENTADORIA




 Dino de Alcântara

Poucas pessoas desejaram tanto uma aposentaria quanto Jacinto, mais conhecido no Cujupe pela alcunha de Sertão. Com a casa inteira, a exceção de uma parede do quarto de dormir e de um pedaço da cozinha, para não atrapalhar o fogo, por tapar, Sertão vivia como um cigano, sem se preocupar com o “conforto da vida moderna”. Saía para pescar de tarrafa e, se voltava com peixe, comia logo tudo, para não ter o trabalho de salpresar. O dia de amanhã sempre ficava para o outro dia. Não se preocupava. Porém, quando a idade bateu-lhe à porta, não falava em outra coisa nas rodas de conversa, que não a sonhada aposentadoria. Pensava em comprar arroz e feijão na quitanda de Aniceto e pagar logo com dinheiro tirado do bolso. “No ditrás!” “Não no da frente é melhor!”.
Perto dos sessenta, já contava os meses. Até que chegou aos sessenta e cinco. Preparou-se todo, colocou num saco toda a documentação e, com a ajuda de um conhecedor das leis, remou canoa até a sede de Alcântara. Para sua sorte, a aposentadoria não lhe deu muito trabalho, porém a primeira remessa do dinheiro demorou muito a chegar. Todo mês ia Sertão do Cujupe até Alcântara ver se já tinha chegado o seu. Mas nada do capital dá sinal de vida. Já estava impaciente, achando que o governo nunca ia pagar.
A espera já estava lhe maltratando, até que o professor Jonas veio com a boa notícia, dizendo que a “bolada estava na conta!”. Sertão correu para buscar o dinheiro. Como não encontrou remador, foi com vários outros passageiros na canoa de Zuza.
Ao voltar, de tardinha, ficou pensando que a rapaziada na porta de Aniceto, ao vê-lo passar, com os bolsos recheados, iam pedir grode. Não só um, mas quatro, cinco, dez. Foi perto do Porto Grande que teve uma ideia: descer antes do Porto do Cujupe. Assim não precisaria passar na porta da quitanda. Mesmo com cara amarrada, o mestre Zuza deu um bordo na Sirimônia para deixar Sertão.
Para não cruzar com nenhum pedinte, com dinheiro arrumado e preso a duas ligas, entrou no mato, antes da casa de Ponciano. Rasgou uma capoeira até sair no caminho do Manjaco. Do Manjaco, cortou para o caminho do Besouro. Tudo ia bem, apesar do Sol ir se pondo, quando, talvez pela longa caminhada, veio uma dolorosa dor no ventre, da qual nenhum mortal, nem mesmo os aposentados, podem estar livres. Procurou um local seguro para o ato. Tentou baixar a calça até o joelho, mas preferiu, para não grudá-la, retirar completamente. Pôs a roupa num galho de ingazeira e lançou sobre as folhas secas os excrementos que o intestino não quis. Desobrigado o ventre, procurou em vão uma pindoba. Deve que andar agachado por pelo menos uns trinta metros até encontrar uma pindobeira. Limpou-se e voltou atrás da calça. Teve que batê-la várias vezes, pois estava cheia de cupim e formiga. Vestiu-se e rumou para casa. Já passavam das sete horas da noite, quando o cansado Sertão entrou pelo terreiro de sua casa.
Tirou a roupa e foi comer um punhado de camarão seco, dado por João Carneiro na véspera, com farinha d’água. Satisfeito foi ver o dinheiro. Feliz, pois não gasto nenhum tostão com “aquele bando de cachaceiro!” Pegou a calça e correu a meter a mão direita no bolso. Mas não encontrou nos bolsos da frente. Tentou atrás. Nada. Viu pelo cós. Nada. Correu os olhos por dentro da cozinha, depois pelo terreiro. Tudo limpo. Ficou bravo. Acendeu um farol de morrão grosso e voltou pelo mesmo caminho que tinha vindo. Rasgou mato no peito até chegar perto do caminho do Manjaco. Nada. Tentou encontrar o local em que havia despejado os excrementos. Não se lembrava mais. Uma ventania forte, quase um sopro de uma visagem, apagou o farol.
Às dez da noite, um Sertão triste, cabisbaixo, com corpo mole, como se fosse dar febre, entrava novamente no terreiro da casa.

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