sexta-feira, 12 de maio de 2017

A SOPA E O CARANGUEJO


Dino de Alcântara

Quando Lourival resolveu passar uma temporada no Cujupe, a pretexto de umas merecidas férias, desejava duas coisas: descansar e reviver uma das melhores fases de sua vida: a infância, em que, com a liberdade de um bicho selvagem, brincava até se fartar naquelas matas. De cara, descartou o vaso sanitário. Queria alguma coisa que lhe lembrasse dos anos 50 e 60, em que usava um longo tronco de ingazeira para as necessidades fisiológicas. Por isso preferiu usar o mato. Mas logo percebeu que isso era anti-higiênico. Assim teve uma ideia: descer a famosa ladeira do Porto de Vevelha. Lá descobriu um enorme mangueiro, ideal para o que desejava. Subia na árvore do mangue, sem grudar os pés, e lançava seus excrementos na lama, longe de casa, o que era conveniente. No terceiro dia, percebeu uma coisa estranha: um amável caranguejo não deixava as suas fezes às moscas. Com suas afiadas patas, devorava tudo. Assim, quando a maré enchia, já não encontrava mais nada para levar. Um belo dia, depois de ter se fartado de um mingau de milho com bastante vinho de coco, teve um problema intestinal tão terrível daqueles que não há tempo nem para retirar a roupa. Ele saiu correndo, já imaginando que não conseguiria chegar ao destino. O fétido líquido já viajava a dezenas de centímetros por segundo. A qualquer momento chegaria com certeza aos fundilhos. Ao alcançar, no entanto, a árvore, o famigerado crustáceo sai da toca a mil, com suas patas afiadíssimas. Ao mesmo tempo em que fazia expelir a água podre, Lourival foi logo avisando, de dedo em riste na direção do animal:

— Epa! Nem vem de garfo, cumpade, que a comida hoje é sopa!

quarta-feira, 10 de maio de 2017

PAIACO E VISAGEM NA ENCRUZILHADA



 Dino de Alcântara
 
Qualquer que seja a encruzilhada, perto ou longe das casas, sempre será vista como um lugar misterioso. Em Édipo Rei, de Sófocles, foi num lugar desse tipo que o príncipe matou o próprio pai, Laios, cumprindo a velha maldição do rei da Élida. Em Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, o suposto pacto entre Riobaldo e o Demônio foi feito num entroncamento.
Embora Raimundo Paiaco não fosse leitor nem do tragediógrafo grego nem do revolucionário da Geração de 45 do Modernismo Brasileiro, tinha lá suas impressões acerca do cruzamento de caminhos. Para ele, era lá que ficavam as visagens, sobretudo nas noites escuras, em que a lua não alumia o céu escuro.
Numa noite, de escuridão total, munido de um farol de morrão grosso, vindo de uma boa e longa conversa na casa do compadre Mariano, nosso personagem se lembrou de vários defuntos, justamente quando foi se aproximando da misteriosa encruzilhada do oitizeiro. Um friozinho percorreu-lhe a espinha. Imaginou tratar-se de um vento gelado vindo do porto. Mas, à medida que foi se chegando mais próximo de um tuncunzeiro, ouviu uma voz (longe). Imaginou que era um bicho. Uma raposa ou um quati. Quando cruzou o nó do caminho, um sopro forte apagou-lhe o farol. Novo arrepio nas costas. Pegou a caixa de fósforos e acendeu novamente o morrão. Deu dois passos, e novo sopro. O medo começou a percorrer os seus neurônios. O batimento cardíaco acelerou. Uma leve tontura veio à cabeça. Tentou pegar novamente um palito de fósforo, mas não a encontrou. Impressionante! Porque havia acabado de acender um palito. Enfim estava na própria mão esquerda. Acendeu. A luz raiou novamente. Deu mais uns três ou quatro passos, e um sopro, como se fosse de gente, apagou a chama, deixando o caminho numa escuridão feia. Uma risada veio atordoar o seu espírito. Nessa hora, Paiaco não conseguiu mais pensar em nada, só em fugir, correndo como um porco-do-mato no Apicum da Ilha Grande. Uma sensação estranha o acompanhou até chegar em casa. Era como se estivesse sendo seguido por alguém.
Nunca mais Paiaco cruzou esse caminho sem antes fazer o pelo sinal.

terça-feira, 9 de maio de 2017

OFÊNDIA E OS DOIS AMANTES



 Dino de Alcântara

Conta-nos Orlando do Itapeua que, quando alguém quer saber se uma mulher do início do século XX era bonita precisa consultar os sábios antigos, isto é, os mais velhos. Dessa forma, recorrendo aos mais idosos moradores do Cujupe, descobrimos que Ofêndia era das mais bonitas mulheres de sua geração. Curvas sinuosas nos quadris, seios bem talhados, boca bem desenhada, com dentição normal, entre outros atributos. Foi por conta desses e de outros predicados que o velho Sinhuca se engraçou da bela moça de seios formosos. Logo passou a frequentar a casa da deusa Vênus. Foram meses de pura felicidade, mas as mulheres bonitas têm um inconveniente grave: atraem muitos olhares masculinos. Um desses olhares (correspondido, aliás) atendia pelo nome de Alexandre Brito – por coincidência, irmão de Sinhuca.
Ofêndia entregou os dotes e o amor aos dois mancedos sem problemas. Mas, numa noite de junho, em que a chuva deu uma trégua para os lados da Sirimônia, saiu o jovem Alexandre cheio de testosterona direto para casa da musa. Ao entrar na casa, não se sabe se por medo de o irmão mais velho chegar a qualquer momento ou se por precaução mesmo, passou a tranca na porta e reforçou com uma escora. Feito isso, lançou-se sobre a rede de Ofêndia como se fosse Ulisses nos braços de Penélope. Saciado dos prazeres carnais, não resistiu e pediu ao sono forças para uma segunda viagem à ilha dos prazeres. No sono profundo, sonhou que Sinhuca entrava pela porta roubando a sua bela ninfa. Acordou meio sobressaltado. Levantou e tomou uma caneca de água do pote. Foi aí que percebeu um toque leve na porta. A princípio, pensou tratar-se de Chibé, o cão da casa. Mas, depois, viu que se tratava de mão de gente. Ouviu um sussurro. Não podia ser Sinhuca. Não tinha dado tempo de chegar da cidade. Ou era? Não. Pararam de bater. Sentiu um alívio. Isso era ótimo.  Estava com a bexiga a ponto de estourar. Precisava ir no mato aliviar. Não gostava de penico. Isso era coisa de mulher. Não. Homem vai no mato mesmo. Tirou a escora da porta. Abriu-a caladinho e saiu no terreiro. Nem sinal de Chibé. Imaginando ser algum amante à procura de amor, disse bem alto:
 – Homem que é homem não se atrasa! Perde a vez!
Foi até perto do bananal. Desobrigou a bexiga com jeito, encharcando um pé de bananeira nanica.
Nesse momento, enquanto Alexandre aliviava o ventre, Sinhuca, que havia chegado havia pouco da cidade, aproveitou a oportunidade e entrou na “mansão dos prazeres”. Não se sabe o que disse a Ofêndia, mas ela nada disse, aceitou de bom grado que era a vez de Sinhuca, etc.
Minutos depois, um calmo Alexandre tentava em vão entrar na casa.  Como experimentou a porta e viu que estava trancada, talvez até com a escora, gritou do lado de fora para Ofêndia abrir, mas só ouviu uma voz que reconheceu ser do irmão mais velho:
– Alexandre, homem que é homem não sai pra mijar deixando a porta aberta! Perde a vez!
E pulou na rede de Ofêndia!

segunda-feira, 8 de maio de 2017

O VELHO SERTÃO E SUA APOSENTADORIA




 Dino de Alcântara

Poucas pessoas desejaram tanto uma aposentaria quanto Jacinto, mais conhecido no Cujupe pela alcunha de Sertão. Com a casa inteira, a exceção de uma parede do quarto de dormir e de um pedaço da cozinha, para não atrapalhar o fogo, por tapar, Sertão vivia como um cigano, sem se preocupar com o “conforto da vida moderna”. Saía para pescar de tarrafa e, se voltava com peixe, comia logo tudo, para não ter o trabalho de salpresar. O dia de amanhã sempre ficava para o outro dia. Não se preocupava. Porém, quando a idade bateu-lhe à porta, não falava em outra coisa nas rodas de conversa, que não a sonhada aposentadoria. Pensava em comprar arroz e feijão na quitanda de Aniceto e pagar logo com dinheiro tirado do bolso. “No ditrás!” “Não no da frente é melhor!”.
Perto dos sessenta, já contava os meses. Até que chegou aos sessenta e cinco. Preparou-se todo, colocou num saco toda a documentação e, com a ajuda de um conhecedor das leis, remou canoa até a sede de Alcântara. Para sua sorte, a aposentadoria não lhe deu muito trabalho, porém a primeira remessa do dinheiro demorou muito a chegar. Todo mês ia Sertão do Cujupe até Alcântara ver se já tinha chegado o seu. Mas nada do capital dá sinal de vida. Já estava impaciente, achando que o governo nunca ia pagar.
A espera já estava lhe maltratando, até que o professor Jonas veio com a boa notícia, dizendo que a “bolada estava na conta!”. Sertão correu para buscar o dinheiro. Como não encontrou remador, foi com vários outros passageiros na canoa de Zuza.
Ao voltar, de tardinha, ficou pensando que a rapaziada na porta de Aniceto, ao vê-lo passar, com os bolsos recheados, iam pedir grode. Não só um, mas quatro, cinco, dez. Foi perto do Porto Grande que teve uma ideia: descer antes do Porto do Cujupe. Assim não precisaria passar na porta da quitanda. Mesmo com cara amarrada, o mestre Zuza deu um bordo na Sirimônia para deixar Sertão.
Para não cruzar com nenhum pedinte, com dinheiro arrumado e preso a duas ligas, entrou no mato, antes da casa de Ponciano. Rasgou uma capoeira até sair no caminho do Manjaco. Do Manjaco, cortou para o caminho do Besouro. Tudo ia bem, apesar do Sol ir se pondo, quando, talvez pela longa caminhada, veio uma dolorosa dor no ventre, da qual nenhum mortal, nem mesmo os aposentados, podem estar livres. Procurou um local seguro para o ato. Tentou baixar a calça até o joelho, mas preferiu, para não grudá-la, retirar completamente. Pôs a roupa num galho de ingazeira e lançou sobre as folhas secas os excrementos que o intestino não quis. Desobrigado o ventre, procurou em vão uma pindoba. Deve que andar agachado por pelo menos uns trinta metros até encontrar uma pindobeira. Limpou-se e voltou atrás da calça. Teve que batê-la várias vezes, pois estava cheia de cupim e formiga. Vestiu-se e rumou para casa. Já passavam das sete horas da noite, quando o cansado Sertão entrou pelo terreiro de sua casa.
Tirou a roupa e foi comer um punhado de camarão seco, dado por João Carneiro na véspera, com farinha d’água. Satisfeito foi ver o dinheiro. Feliz, pois não gasto nenhum tostão com “aquele bando de cachaceiro!” Pegou a calça e correu a meter a mão direita no bolso. Mas não encontrou nos bolsos da frente. Tentou atrás. Nada. Viu pelo cós. Nada. Correu os olhos por dentro da cozinha, depois pelo terreiro. Tudo limpo. Ficou bravo. Acendeu um farol de morrão grosso e voltou pelo mesmo caminho que tinha vindo. Rasgou mato no peito até chegar perto do caminho do Manjaco. Nada. Tentou encontrar o local em que havia despejado os excrementos. Não se lembrava mais. Uma ventania forte, quase um sopro de uma visagem, apagou o farol.
Às dez da noite, um Sertão triste, cabisbaixo, com corpo mole, como se fosse dar febre, entrava novamente no terreiro da casa.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

O SOGRO SEM-VERGONHA



Dino de Alcântara

 

 
 
Dizem os moradores do Cujupe que quem tem vergonha não envergonha o outro. Essa máxima, ou anexim, segundo Arthur Azevedo, rege os ditames de relacionamento entre os mais velhos, deixando livres os mais moços, uma vez que nenhuma regra comportamental consegue reger os arroubos da juventude.
Depois de uma longa visita em nossas casas, segundo os ditames, precisamos registrar um “está cedo!”, para dar a impressão ao hóspede que a sua presença é essencial, mesmo que um bocejo insinue o contrário.
Entretanto essas regras do bom comportamento foram completamente deixadas de lado no almoço de aniversário da Branquinha. O pai e o genro, não muito afinados, desde o dia em que Pedro Brasa se engraçou da única filha de Chico Couro Grosso, sentaram-se cada um numa cabeceira da mesa, posta no imenso quintal debaixo de uma mangueira rosa e uma jaqueira.
Chico Couro Grosso preparou-se à sua maneira para esse almoço. Disse na véspera para Labicho que ia mais por causa da filha. Não podia faltar, que pelo pilantra não ia coisa nenhuma.
Durante o almoço, o pai (ou sogro), sentado como um abade, só mandando arriar o pato e o porco assado, mais arroz, macarrão, feijão, purê de macaxeira, farinha d’água, salada, etc., ria alto, como se estivesse não na casa do “pilantra”, mas na casa apenas da filha.
Já passava de uma da tarde, quando Pedro Brasa, já satisfeito, porque abusou do suco de cajazinho e do refrigerante, percebeu que a comida ia aos poucos se esvaindo da mesa. Sem atentar para o fato de estar sendo grosseiro com os convidados e, sobretudo, com o sogro, levantou-se e fuzilou, bem seguro do que ia dizer:
– Estou satisfeito! Eu e minha mulher. E assim fará quem vergonha tiver!
Chico Couro Grosso, ouvindo esse disparo verbal, que quase o fulmina, parou com a colher de arroz e um bom pedaço de pato bem próximo da boca, olhou para o genro e vociferou:
E como eu nunca tive e nunca hei de ter, daqui só saio depois que a barriga encher!
E encheu a boca com a imensa colher!