sábado, 13 de maio de 2017

O Cão e a Coragem



              Era um sábado comum do ano de 2016. A família mais tradicional do Cujupe fazia o caminho de quase todos os finais de semana. Como de costume, o funcionário que tem o apelido de nome igual à um famoso cereal bastante consumido por brasileiros, foi cedo para o trabalho, levando consigo sua amada esposa e seus dois queridos filhos.
            Chegando no sítio, a esposa e a irmã foram logo trabalhar na cozinha e o  irmão tirar madeira no mato após uma noite de pescaria. O herói de nossa história ficou aguardando os patrões chegarem sentado em um antigo banco, que diga-se de passagem, já está um tanto quanto fundo no local sentado por ele.
            Os patrões chegam, ele permanece imóvel de olho arregalado. Todos em movimento para guardar as compras, organizar as bolsas no quartos e fazendo diversas perguntas sobre os trabalhos realizados pelos três irmãos no decorrer da semana. A flor da família falou pelos três sobre os trabalhos. Nesse dia, alguém estava com o DVD do filme de terror "Boneco Assassino", e todos assistiram após o rango.
            Por volta das 18h, a esposa do exemplar funcionário pediu ao mesmo que fosse buscar algumas amostras de perfume na casa em que moravam, visto que por razões do grande movimento no sítio do Itapéua, fosse provável uma boa venda. Esse mês era bandeira vermelha na conta de energia, por isso sempre desligava o registro antes de sair de casa.
            Chegando na residência, resolveu adentrar sem precisar ligar o disjuntor. Pegou a maleta com as fragrâncias e,  ao passar em frente ao quarto da princesinha, viu que a boneca de metro e meio estava sentada na cama olhando para ele e, não sabendo como, com o ventilador ligado avoassando os cabelos da boneca. Um frio tomou conta do espinhaço do destemido homem. Criou coragem, desligou o ventilador. Suou tanto e ficou sem ar, que precisou voltar a cozinha e tomar um copo de água. Quando voltou, a boneca ainda olhava e o ventilador continuava a troar. Só deu tempo de dizer "quiser ficar com o ventilador, pode ficar com ele ligado!". E Saiu em disparada em direção à casa dos patrões.
            Por volta das 21h, a família desse grande homem e marido a casa regressaram. Ele voltou cheio de coragem, não estava mais sozinho. Quando o relógio do paraíba bateu exatamente 3h da manhã (considerado por muitos místicos como a hora da morte), eis que a dona da casa escutou algumas batidas na porta da frente.
- Amor dela, tem alguém porta, acorda.
- Larga disso, mulher. Tu tava era sonhando, deita e volte a dormir.
            Mais três batidas na porta. A "porta" dos fundos do nobre cavaleiro se contraiu de tal forma que não passava um vento, então ele diz:
- Tem gente mesmo, vão derrubar essa porta.
- E o que tu vai fazer?
- E eu lá sei? Vão matar a gente - disse essas últimas palavras suando frio.
            Mais três batidas na porta. O machão se lembra que possui uma barra de ferro pontuda, corre para buscar e fala pra esposa:
- Eu tou com essa barra de ferro, tu abre a porta e eu meto o esporão.
- Mas homi, assim vão me matar primeiro.
- Mas se eu abrir, vão me matar e eu não vou conseguir espetar.
            A esposa meio sem entender, e quase já acreditando que o fiel esposo estava com um pouco de medo, resolveu atender ao pedido. Abrindo a porta, o cachorro da vizinha que estava cheio de pira e balançando o rabo, deu um pinote em direção à rua fazendo o rapaz mais corajoso daquelas bandas soltar um involuntário gemido.
-Aaaaaai.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A SOPA E O CARANGUEJO


Dino de Alcântara

Quando Lourival resolveu passar uma temporada no Cujupe, a pretexto de umas merecidas férias, desejava duas coisas: descansar e reviver uma das melhores fases de sua vida: a infância, em que, com a liberdade de um bicho selvagem, brincava até se fartar naquelas matas. De cara, descartou o vaso sanitário. Queria alguma coisa que lhe lembrasse dos anos 50 e 60, em que usava um longo tronco de ingazeira para as necessidades fisiológicas. Por isso preferiu usar o mato. Mas logo percebeu que isso era anti-higiênico. Assim teve uma ideia: descer a famosa ladeira do Porto de Vevelha. Lá descobriu um enorme mangueiro, ideal para o que desejava. Subia na árvore do mangue, sem grudar os pés, e lançava seus excrementos na lama, longe de casa, o que era conveniente. No terceiro dia, percebeu uma coisa estranha: um amável caranguejo não deixava as suas fezes às moscas. Com suas afiadas patas, devorava tudo. Assim, quando a maré enchia, já não encontrava mais nada para levar. Um belo dia, depois de ter se fartado de um mingau de milho com bastante vinho de coco, teve um problema intestinal tão terrível daqueles que não há tempo nem para retirar a roupa. Ele saiu correndo, já imaginando que não conseguiria chegar ao destino. O fétido líquido já viajava a dezenas de centímetros por segundo. A qualquer momento chegaria com certeza aos fundilhos. Ao alcançar, no entanto, a árvore, o famigerado crustáceo sai da toca a mil, com suas patas afiadíssimas. Ao mesmo tempo em que fazia expelir a água podre, Lourival foi logo avisando, de dedo em riste na direção do animal:

— Epa! Nem vem de garfo, cumpade, que a comida hoje é sopa!

quarta-feira, 10 de maio de 2017

PAIACO E VISAGEM NA ENCRUZILHADA



 Dino de Alcântara
 
Qualquer que seja a encruzilhada, perto ou longe das casas, sempre será vista como um lugar misterioso. Em Édipo Rei, de Sófocles, foi num lugar desse tipo que o príncipe matou o próprio pai, Laios, cumprindo a velha maldição do rei da Élida. Em Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, o suposto pacto entre Riobaldo e o Demônio foi feito num entroncamento.
Embora Raimundo Paiaco não fosse leitor nem do tragediógrafo grego nem do revolucionário da Geração de 45 do Modernismo Brasileiro, tinha lá suas impressões acerca do cruzamento de caminhos. Para ele, era lá que ficavam as visagens, sobretudo nas noites escuras, em que a lua não alumia o céu escuro.
Numa noite, de escuridão total, munido de um farol de morrão grosso, vindo de uma boa e longa conversa na casa do compadre Mariano, nosso personagem se lembrou de vários defuntos, justamente quando foi se aproximando da misteriosa encruzilhada do oitizeiro. Um friozinho percorreu-lhe a espinha. Imaginou tratar-se de um vento gelado vindo do porto. Mas, à medida que foi se chegando mais próximo de um tuncunzeiro, ouviu uma voz (longe). Imaginou que era um bicho. Uma raposa ou um quati. Quando cruzou o nó do caminho, um sopro forte apagou-lhe o farol. Novo arrepio nas costas. Pegou a caixa de fósforos e acendeu novamente o morrão. Deu dois passos, e novo sopro. O medo começou a percorrer os seus neurônios. O batimento cardíaco acelerou. Uma leve tontura veio à cabeça. Tentou pegar novamente um palito de fósforo, mas não a encontrou. Impressionante! Porque havia acabado de acender um palito. Enfim estava na própria mão esquerda. Acendeu. A luz raiou novamente. Deu mais uns três ou quatro passos, e um sopro, como se fosse de gente, apagou a chama, deixando o caminho numa escuridão feia. Uma risada veio atordoar o seu espírito. Nessa hora, Paiaco não conseguiu mais pensar em nada, só em fugir, correndo como um porco-do-mato no Apicum da Ilha Grande. Uma sensação estranha o acompanhou até chegar em casa. Era como se estivesse sendo seguido por alguém.
Nunca mais Paiaco cruzou esse caminho sem antes fazer o pelo sinal.

terça-feira, 9 de maio de 2017

OFÊNDIA E OS DOIS AMANTES



 Dino de Alcântara

Conta-nos Orlando do Itapeua que, quando alguém quer saber se uma mulher do início do século XX era bonita precisa consultar os sábios antigos, isto é, os mais velhos. Dessa forma, recorrendo aos mais idosos moradores do Cujupe, descobrimos que Ofêndia era das mais bonitas mulheres de sua geração. Curvas sinuosas nos quadris, seios bem talhados, boca bem desenhada, com dentição normal, entre outros atributos. Foi por conta desses e de outros predicados que o velho Sinhuca se engraçou da bela moça de seios formosos. Logo passou a frequentar a casa da deusa Vênus. Foram meses de pura felicidade, mas as mulheres bonitas têm um inconveniente grave: atraem muitos olhares masculinos. Um desses olhares (correspondido, aliás) atendia pelo nome de Alexandre Brito – por coincidência, irmão de Sinhuca.
Ofêndia entregou os dotes e o amor aos dois mancedos sem problemas. Mas, numa noite de junho, em que a chuva deu uma trégua para os lados da Sirimônia, saiu o jovem Alexandre cheio de testosterona direto para casa da musa. Ao entrar na casa, não se sabe se por medo de o irmão mais velho chegar a qualquer momento ou se por precaução mesmo, passou a tranca na porta e reforçou com uma escora. Feito isso, lançou-se sobre a rede de Ofêndia como se fosse Ulisses nos braços de Penélope. Saciado dos prazeres carnais, não resistiu e pediu ao sono forças para uma segunda viagem à ilha dos prazeres. No sono profundo, sonhou que Sinhuca entrava pela porta roubando a sua bela ninfa. Acordou meio sobressaltado. Levantou e tomou uma caneca de água do pote. Foi aí que percebeu um toque leve na porta. A princípio, pensou tratar-se de Chibé, o cão da casa. Mas, depois, viu que se tratava de mão de gente. Ouviu um sussurro. Não podia ser Sinhuca. Não tinha dado tempo de chegar da cidade. Ou era? Não. Pararam de bater. Sentiu um alívio. Isso era ótimo.  Estava com a bexiga a ponto de estourar. Precisava ir no mato aliviar. Não gostava de penico. Isso era coisa de mulher. Não. Homem vai no mato mesmo. Tirou a escora da porta. Abriu-a caladinho e saiu no terreiro. Nem sinal de Chibé. Imaginando ser algum amante à procura de amor, disse bem alto:
 – Homem que é homem não se atrasa! Perde a vez!
Foi até perto do bananal. Desobrigou a bexiga com jeito, encharcando um pé de bananeira nanica.
Nesse momento, enquanto Alexandre aliviava o ventre, Sinhuca, que havia chegado havia pouco da cidade, aproveitou a oportunidade e entrou na “mansão dos prazeres”. Não se sabe o que disse a Ofêndia, mas ela nada disse, aceitou de bom grado que era a vez de Sinhuca, etc.
Minutos depois, um calmo Alexandre tentava em vão entrar na casa.  Como experimentou a porta e viu que estava trancada, talvez até com a escora, gritou do lado de fora para Ofêndia abrir, mas só ouviu uma voz que reconheceu ser do irmão mais velho:
– Alexandre, homem que é homem não sai pra mijar deixando a porta aberta! Perde a vez!
E pulou na rede de Ofêndia!

segunda-feira, 8 de maio de 2017

O VELHO SERTÃO E SUA APOSENTADORIA




 Dino de Alcântara

Poucas pessoas desejaram tanto uma aposentaria quanto Jacinto, mais conhecido no Cujupe pela alcunha de Sertão. Com a casa inteira, a exceção de uma parede do quarto de dormir e de um pedaço da cozinha, para não atrapalhar o fogo, por tapar, Sertão vivia como um cigano, sem se preocupar com o “conforto da vida moderna”. Saía para pescar de tarrafa e, se voltava com peixe, comia logo tudo, para não ter o trabalho de salpresar. O dia de amanhã sempre ficava para o outro dia. Não se preocupava. Porém, quando a idade bateu-lhe à porta, não falava em outra coisa nas rodas de conversa, que não a sonhada aposentadoria. Pensava em comprar arroz e feijão na quitanda de Aniceto e pagar logo com dinheiro tirado do bolso. “No ditrás!” “Não no da frente é melhor!”.
Perto dos sessenta, já contava os meses. Até que chegou aos sessenta e cinco. Preparou-se todo, colocou num saco toda a documentação e, com a ajuda de um conhecedor das leis, remou canoa até a sede de Alcântara. Para sua sorte, a aposentadoria não lhe deu muito trabalho, porém a primeira remessa do dinheiro demorou muito a chegar. Todo mês ia Sertão do Cujupe até Alcântara ver se já tinha chegado o seu. Mas nada do capital dá sinal de vida. Já estava impaciente, achando que o governo nunca ia pagar.
A espera já estava lhe maltratando, até que o professor Jonas veio com a boa notícia, dizendo que a “bolada estava na conta!”. Sertão correu para buscar o dinheiro. Como não encontrou remador, foi com vários outros passageiros na canoa de Zuza.
Ao voltar, de tardinha, ficou pensando que a rapaziada na porta de Aniceto, ao vê-lo passar, com os bolsos recheados, iam pedir grode. Não só um, mas quatro, cinco, dez. Foi perto do Porto Grande que teve uma ideia: descer antes do Porto do Cujupe. Assim não precisaria passar na porta da quitanda. Mesmo com cara amarrada, o mestre Zuza deu um bordo na Sirimônia para deixar Sertão.
Para não cruzar com nenhum pedinte, com dinheiro arrumado e preso a duas ligas, entrou no mato, antes da casa de Ponciano. Rasgou uma capoeira até sair no caminho do Manjaco. Do Manjaco, cortou para o caminho do Besouro. Tudo ia bem, apesar do Sol ir se pondo, quando, talvez pela longa caminhada, veio uma dolorosa dor no ventre, da qual nenhum mortal, nem mesmo os aposentados, podem estar livres. Procurou um local seguro para o ato. Tentou baixar a calça até o joelho, mas preferiu, para não grudá-la, retirar completamente. Pôs a roupa num galho de ingazeira e lançou sobre as folhas secas os excrementos que o intestino não quis. Desobrigado o ventre, procurou em vão uma pindoba. Deve que andar agachado por pelo menos uns trinta metros até encontrar uma pindobeira. Limpou-se e voltou atrás da calça. Teve que batê-la várias vezes, pois estava cheia de cupim e formiga. Vestiu-se e rumou para casa. Já passavam das sete horas da noite, quando o cansado Sertão entrou pelo terreiro de sua casa.
Tirou a roupa e foi comer um punhado de camarão seco, dado por João Carneiro na véspera, com farinha d’água. Satisfeito foi ver o dinheiro. Feliz, pois não gasto nenhum tostão com “aquele bando de cachaceiro!” Pegou a calça e correu a meter a mão direita no bolso. Mas não encontrou nos bolsos da frente. Tentou atrás. Nada. Viu pelo cós. Nada. Correu os olhos por dentro da cozinha, depois pelo terreiro. Tudo limpo. Ficou bravo. Acendeu um farol de morrão grosso e voltou pelo mesmo caminho que tinha vindo. Rasgou mato no peito até chegar perto do caminho do Manjaco. Nada. Tentou encontrar o local em que havia despejado os excrementos. Não se lembrava mais. Uma ventania forte, quase um sopro de uma visagem, apagou o farol.
Às dez da noite, um Sertão triste, cabisbaixo, com corpo mole, como se fosse dar febre, entrava novamente no terreiro da casa.