terça-feira, 16 de maio de 2017

BAZILHA E O CACHORRO JAPÃO



 Dino de Alcântara
 
Ter cachorro em casa é uma atitude humanitária, de certo modo, ou uma atitude de segurança, haja vista que, numa terra cheia de raposas, oncinhas, entre outros animais comedores de galinhas, é necessário ter um cão para afastar os predadores. Assim, Bazilha adotou um cãozinho. Deu a ele o nome de Japão, por ter uns olhos um tanto parecidos com os (olhos) dos orientais. Quando pequeno, era o xodó da casa. Latia, corria atrás dos donos, etc. Mas, à medida que foi crescendo, foi ficando esguio, estranho. Algumas noites, Bazilha até se assustava com o cachorro.
Chamado para ver o animal, Zé Preá fez uma reza que pouco adiantou. O bicho continuava estranho. Latia para o nada. Às vezes, latia tão forte, que dava a impressão de ter alguém rondando a casa. Uma noite, Bazilha sonhou que o Japão era um cão do mal. Seus olhos, no sonho, faiscavam como duas curacangas numa noite escura. Acordou sobressaltada. Tomou uma decisão. Difícil, mas decidiu por sacrificar o bicho. Não podia mais continuar desse jeito. Quando dormia sozinha, tinha medo dele. Para a empresa, contratou dois cabocos valentes, dispostos, sem medo: Saturninho e Jonoro. A velha traçou todo um plano de segurança. Eles levariam o cão para o Santana e o matariam por lá. Assim, estaria livre de um remorso. Do contrário, se visse o animal morto, poderia, inclusive, sonhar com ele. No dia aprazado, os dois cabocos pegaram uma corda, laçaram o animal, prenderam-no e o levaram de casco para o outro lado do Rio do Cujupe. Lá trataram de sacrificá-lo. Jonoro foi o médico legista e atestou a morte. Cumprida a missão, quiseram enterrar, mas Saturnino não quis. Apenas colocaram umas folhas secas por cima. Feito o serviço, cambaram para o Porto do Cujupe. Ao chegar, satisfeitos pelo serviço rápido, já sentindo o gosto da Pitu que iam tomar no Aniceto, têm uma visão aterradora: debaixo de um cajueiro, sentado, lambendo as patas de trás, estava Japão. Os dois ficaram imóveis, mudos, sem esboçar o mais leve gesto. Até se benzeram diante do espanto e rumaram para casa. Nunca mais aceitariam um serviço desses. Bazilha, quando tomou ciência do que tinha acontecido, mandou fazer uma reza para espantar os maus espíritos. Nunca mais desejou matar um cão. Ele, depois, de três dias e três noites, foi embora para nunca mais sentar os pés na sua antiga casa nem no Itapeua. Nunca se soube o que de fato aconteceu com Japão.

domingo, 14 de maio de 2017

CHICO E O CURUPIRA



 Dino de Alcântara

Em meados dos anos 40 do Século XX, havia depois a campina a casa de João da Cruz, homem já na casa dos sessenta, mas ainda bem disposto para o serviço. Sua casa, pequena, tinha um dos quintais mais singulares do Cujupe: o capim verdejante no inverno e nos dias de lua cheia a maré vindo do Guariba.
Chico, numa noite de abril, foi até a casa do morador e com ele proseou um bom tempo, tomando uma boa xicara de café, enquanto o anfitrião trançava um cofo de alqueire.
A lua já marcava oito horas, quando o morador do Itapeua resolveu atravessar a campina em direção à ladeira grande. Chegando ao começo da subida, bastante íngreme e escorregadia, devido às chuvas da tarde, algo o impede de subir. A princípio, imaginou tratar-se de uma tontura ou canseira. Mas logo percebeu que era algo fora do seu corpo. Voltou dois passos e acelerou o pé para frente, mas, no mesmo ponto, esbarrou numa cerca invisível. Tentou gritar, mas a língua ficou presa no céu da boca. Não conseguiu senão produzir um grunhido. As pernas ficaram bambas, dormentes, um calafrio percorreu o corpo todo. Um zunido no ouvido direito. Logo em seguida, veio a impressão de ter ouvido uma risadinha perto de um marajazeiro. Mas uma vez tentou gritar, em vão. Não saía nada de som. Pela terceira vez, tentou avançar. Nada. Uma força o impedia de seguir. Olhou para trás. O clarão da campina. Um uivo forte cortou aquela mata fechada. Um vulto de um homenzinho saiu correndo de um lado para outro. “Curupira!” Arregalou os olhos. Virou novamente e viu a claridade. Numa fração de segundos, saiu em disparada rumo à casa do João da Cruz. Chegou trôpego, sem “um farelo de ar”. Minutos depois, Chico, armado até os dentes, voltava disposto a quebrar o lombo dos curupiras. Trazia uma faca, um cacete de urucurana e uma lamparina. Ao adentrar a mata que formava a subida da ladeira do Itapeua, preparou o cacete para meter nas costas dos safados, mas um misto de decepção e derrota afloraram no seu semblante. Não havia ninguém por ali. Ainda gritou: “Se forem machos, venham pro caminho!”, mas só uma coruja, no alto da mangueira xarope, parece que ouviu esse desafio. Chegou ao topo sem esbarrar em nada. Um cachorro de Mariano latiu alto, mas foi logo reprovado pelo homem. Nessa noite, um curupira safado pulou no Chico várias vezes, num pesadelo que ele teve pelas três horas da madrugada.

sábado, 13 de maio de 2017

O Cão e a Coragem



              Era um sábado comum do ano de 2016. A família mais tradicional do Cujupe fazia o caminho de quase todos os finais de semana. Como de costume, o funcionário que tem o apelido de nome igual à um famoso cereal bastante consumido por brasileiros, foi cedo para o trabalho, levando consigo sua amada esposa e seus dois queridos filhos.
            Chegando no sítio, a esposa e a irmã foram logo trabalhar na cozinha e o  irmão tirar madeira no mato após uma noite de pescaria. O herói de nossa história ficou aguardando os patrões chegarem sentado em um antigo banco, que diga-se de passagem, já está um tanto quanto fundo no local sentado por ele.
            Os patrões chegam, ele permanece imóvel de olho arregalado. Todos em movimento para guardar as compras, organizar as bolsas no quartos e fazendo diversas perguntas sobre os trabalhos realizados pelos três irmãos no decorrer da semana. A flor da família falou pelos três sobre os trabalhos. Nesse dia, alguém estava com o DVD do filme de terror "Boneco Assassino", e todos assistiram após o rango.
            Por volta das 18h, a esposa do exemplar funcionário pediu ao mesmo que fosse buscar algumas amostras de perfume na casa em que moravam, visto que por razões do grande movimento no sítio do Itapéua, fosse provável uma boa venda. Esse mês era bandeira vermelha na conta de energia, por isso sempre desligava o registro antes de sair de casa.
            Chegando na residência, resolveu adentrar sem precisar ligar o disjuntor. Pegou a maleta com as fragrâncias e,  ao passar em frente ao quarto da princesinha, viu que a boneca de metro e meio estava sentada na cama olhando para ele e, não sabendo como, com o ventilador ligado avoassando os cabelos da boneca. Um frio tomou conta do espinhaço do destemido homem. Criou coragem, desligou o ventilador. Suou tanto e ficou sem ar, que precisou voltar a cozinha e tomar um copo de água. Quando voltou, a boneca ainda olhava e o ventilador continuava a troar. Só deu tempo de dizer "quiser ficar com o ventilador, pode ficar com ele ligado!". E Saiu em disparada em direção à casa dos patrões.
            Por volta das 21h, a família desse grande homem e marido a casa regressaram. Ele voltou cheio de coragem, não estava mais sozinho. Quando o relógio do paraíba bateu exatamente 3h da manhã (considerado por muitos místicos como a hora da morte), eis que a dona da casa escutou algumas batidas na porta da frente.
- Amor dela, tem alguém porta, acorda.
- Larga disso, mulher. Tu tava era sonhando, deita e volte a dormir.
            Mais três batidas na porta. A "porta" dos fundos do nobre cavaleiro se contraiu de tal forma que não passava um vento, então ele diz:
- Tem gente mesmo, vão derrubar essa porta.
- E o que tu vai fazer?
- E eu lá sei? Vão matar a gente - disse essas últimas palavras suando frio.
            Mais três batidas na porta. O machão se lembra que possui uma barra de ferro pontuda, corre para buscar e fala pra esposa:
- Eu tou com essa barra de ferro, tu abre a porta e eu meto o esporão.
- Mas homi, assim vão me matar primeiro.
- Mas se eu abrir, vão me matar e eu não vou conseguir espetar.
            A esposa meio sem entender, e quase já acreditando que o fiel esposo estava com um pouco de medo, resolveu atender ao pedido. Abrindo a porta, o cachorro da vizinha que estava cheio de pira e balançando o rabo, deu um pinote em direção à rua fazendo o rapaz mais corajoso daquelas bandas soltar um involuntário gemido.
-Aaaaaai.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A SOPA E O CARANGUEJO


Dino de Alcântara

Quando Lourival resolveu passar uma temporada no Cujupe, a pretexto de umas merecidas férias, desejava duas coisas: descansar e reviver uma das melhores fases de sua vida: a infância, em que, com a liberdade de um bicho selvagem, brincava até se fartar naquelas matas. De cara, descartou o vaso sanitário. Queria alguma coisa que lhe lembrasse dos anos 50 e 60, em que usava um longo tronco de ingazeira para as necessidades fisiológicas. Por isso preferiu usar o mato. Mas logo percebeu que isso era anti-higiênico. Assim teve uma ideia: descer a famosa ladeira do Porto de Vevelha. Lá descobriu um enorme mangueiro, ideal para o que desejava. Subia na árvore do mangue, sem grudar os pés, e lançava seus excrementos na lama, longe de casa, o que era conveniente. No terceiro dia, percebeu uma coisa estranha: um amável caranguejo não deixava as suas fezes às moscas. Com suas afiadas patas, devorava tudo. Assim, quando a maré enchia, já não encontrava mais nada para levar. Um belo dia, depois de ter se fartado de um mingau de milho com bastante vinho de coco, teve um problema intestinal tão terrível daqueles que não há tempo nem para retirar a roupa. Ele saiu correndo, já imaginando que não conseguiria chegar ao destino. O fétido líquido já viajava a dezenas de centímetros por segundo. A qualquer momento chegaria com certeza aos fundilhos. Ao alcançar, no entanto, a árvore, o famigerado crustáceo sai da toca a mil, com suas patas afiadíssimas. Ao mesmo tempo em que fazia expelir a água podre, Lourival foi logo avisando, de dedo em riste na direção do animal:

— Epa! Nem vem de garfo, cumpade, que a comida hoje é sopa!

quarta-feira, 10 de maio de 2017

PAIACO E VISAGEM NA ENCRUZILHADA



 Dino de Alcântara
 
Qualquer que seja a encruzilhada, perto ou longe das casas, sempre será vista como um lugar misterioso. Em Édipo Rei, de Sófocles, foi num lugar desse tipo que o príncipe matou o próprio pai, Laios, cumprindo a velha maldição do rei da Élida. Em Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, o suposto pacto entre Riobaldo e o Demônio foi feito num entroncamento.
Embora Raimundo Paiaco não fosse leitor nem do tragediógrafo grego nem do revolucionário da Geração de 45 do Modernismo Brasileiro, tinha lá suas impressões acerca do cruzamento de caminhos. Para ele, era lá que ficavam as visagens, sobretudo nas noites escuras, em que a lua não alumia o céu escuro.
Numa noite, de escuridão total, munido de um farol de morrão grosso, vindo de uma boa e longa conversa na casa do compadre Mariano, nosso personagem se lembrou de vários defuntos, justamente quando foi se aproximando da misteriosa encruzilhada do oitizeiro. Um friozinho percorreu-lhe a espinha. Imaginou tratar-se de um vento gelado vindo do porto. Mas, à medida que foi se chegando mais próximo de um tuncunzeiro, ouviu uma voz (longe). Imaginou que era um bicho. Uma raposa ou um quati. Quando cruzou o nó do caminho, um sopro forte apagou-lhe o farol. Novo arrepio nas costas. Pegou a caixa de fósforos e acendeu novamente o morrão. Deu dois passos, e novo sopro. O medo começou a percorrer os seus neurônios. O batimento cardíaco acelerou. Uma leve tontura veio à cabeça. Tentou pegar novamente um palito de fósforo, mas não a encontrou. Impressionante! Porque havia acabado de acender um palito. Enfim estava na própria mão esquerda. Acendeu. A luz raiou novamente. Deu mais uns três ou quatro passos, e um sopro, como se fosse de gente, apagou a chama, deixando o caminho numa escuridão feia. Uma risada veio atordoar o seu espírito. Nessa hora, Paiaco não conseguiu mais pensar em nada, só em fugir, correndo como um porco-do-mato no Apicum da Ilha Grande. Uma sensação estranha o acompanhou até chegar em casa. Era como se estivesse sendo seguido por alguém.
Nunca mais Paiaco cruzou esse caminho sem antes fazer o pelo sinal.