quinta-feira, 8 de junho de 2017

O DESEMBARGADOR E O CÃO



 Dino de Alcântara

Nascimento de Moraes, no seu livro Vencidos e Degenerados, publicado em 1915, dá voz a um dos personagens mais singulares da Literatura Maranhense: Bento. Esse jornalista, como é chamado pelo narrador do romance, afirma, num brilhante artigo sobre a terra de Gonçalves Dias, que o Maranhão ainda vivia (vive para os mais pessimistas) a idade pré-ciência, em que os métodos científicos ainda não haviam sido introduzidos na “terrinha”. Ao contrário, as mezinhas é que curavam as pessoas ricas e pobres. No lugar de uma explicação científica, uma justificativa caseira, do senso-comum. O pião-roxo, o benzimento, etc. eram formas de tratamento das doenças maranhenses.
Em 2016, uma cena deixaria o ilustre maranhense do começo do Século XX intrigado com o pouco avanço da ciência entre nós. Um carro oficial do Tribunal de Justiça do Maranhão indo da Colares Moreira ao Reino Infantil. Dentro, além do motorista, um senhor bem vestido. Função pública: Desembargador. O carro preto se dirigia à escola para buscar o neto do magistrado. Mas algo interrompeu o caminho. Um cachorro vira-lata tentando expelir os restos que o intestino não quis aproveitar de uma comida de dois dias antes. O homem da justiça deu ordem para o motorista parar o carro, assim que percebeu a atitude do cão. Abriu o vidro esquerdo da porta de trás, observou bem o momento em que o animal fazia o esforço no abdômen. Quando percebeu que era a hora, cruzou, como se fossem dois anzóis, os indicadores. Quanto mais o cachorro se espremia, mas os dedos do Desembargador se contraíam. Não eram mais anzóis, mas duas argolas daquelas em que se vê nos guinchos que puxam grandes contêineres no Porto do Itaqui. O bicho, em vão, contraía os músculos do pescoço ao traseiro, numa atitude desesperada, esperando que a natureza ou São Lázaro (protetor dos cães) lhe desse a solução do problema. Sim, era um problema: estava constipado. Tentou mais uma vez. Dentro do carro, o desembargador estava com os dedos vermelhos, o rosto em brasa, os olhos esbugalhados, a língua para fora. E o motorista, tentando conter um risinho canalha. O cachorro abriu mais as pernas na esperança de atenuar a dor. Parecia uma anomalia. Deixou o traseiro bem perto do chão. O magistrado já quase com os dedos escapulindo um do outro, deu um jeito de, sem desfazer o nó, arrumar os indicadores de maneira que continuasse com o engate. Apertou mais, pois sentiu que o cão ia conseguir lançar fora os excrementos. O rosto era agora um misto de dor e alegria. Segurou por quase quarenta segundos a respiração. A língua descendo em direção ao queijo. A luta durou uns dois ou três minutos. Finalmente o cão, derrotado, desistiu. Saiu, cabisbaixo em direção a’O Imparcial. O Idoso, exultante, por ter conseguido vencer o animal. Sem um pingo de ar, fez um gesto que o motorista entendeu que deveria seguir em frente. Estava terminada a luta. O magistrado deu de capote no vira-lata. O carro seguiu seu trajeto. Estacionou em frente à escola. Entrou um garoto de treze, catorze anos. Foi embora. Um leitor mais perspicaz vai indagar, ao final do conto, o que tem essa história com o Cujupe. O narrador responde: a testemunha ocular do episódio era um “caboco” da terra de Manoel Cavalcante.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

SINHUCA E O MELIANTE DA MADRE-DEUS




Dino de Alcântara

Numa crônica escrita na década de 1870 e publicada no jornal O País, Celso Magalhães chamava atenção das autoridades públicas do Maranhão para um problema sanitário que tornava a outrora Atenas Brasileira uma cidade fétida. Não bastasse a quantidade de dejetos oriundos do intestino dos ricos e dos pobres da cidade lançada na foz do Rio Bacanga, as ruas estavam cheias de fezes, tanto jumentos, cavalos, bois, cabras, porcos, etc., como de gente. Isso mesmo: de gente. Havia uma assombrosa quantidade de pessoas que despachavam em qualquer lugar, não se importando se, depois, passaria uma madame por ali, examinando toda aquela obra do intestino humano. O cenário era horrendo. Alguns ainda se davam ao trabalho de colocar uma boa dose de areia ou terra por cima. Outros largavam assim mesmo, ao tempo, para que as moscas viessem cumprir sua missão.
Oitenta anos depois, já no governo de Matos Carvalho, na década de 1950, São Luís ainda esperava uma política sanitária que desse à Ilha do Amor um aspecto melhor, mais higiênico, mais saudável. Os antigos bondes puxados por asnos deram lugar a bondes elétricos, inaugurados ainda no governo de Godofredo Viana, nos idos de 1924, mas a fedentina parecia não ter fim.
Foi nesse cenário que o guarda Sinhuca tomou para si uma missão: punir com rigor quem transformasse a bela cidade numa sentina. Não havia uma lei para punir malfeitores da cidade, mas poderia ser aplicada a lei da vadiagem.
Naquele tarde de sol forte, a brisa da tardinha até trouxe um alívio para os pedestres da Madre-Deus, bairro antigo da cidade.
Sinhuca saiu da Praia Grande em direção à sua casa, um pouco abaixo do antigo cemitério da cidade, o Gavião. Subiu o Beco da Pacotilha, entrou na Rua Grande e passou à Rua São Pantaleão, perto de uma loja de tecidos. Cruzou a porta de Dona Dolores, próximo da Igreja que leva o nome da rua. Caminhou mais um pouco e avistou um homem que demonstrava andar de forma estranha. Fincou os olhos nas pernas e notou que ele contraía as duas pernas, como a fechá-las. Percebeu que o meliante estava atrás de um lugar ermo para lançar seus excrementos. Passou a segui-lo com cuidado. O homem foi em direção ao Cemitério. Quando percebeu que ninguém o examinava, afrouxou o cinto da calça, agachou-se com cuidado e desobrigou o ventre como se estivesse com uma constipação de pelo menos uma semana. Feito o serviço, o homem tirou um resto de jornal velho que trazia no bolso e fez a higiene. Levantou-se e foi tranquilamente em seu rumo. Nesse instante, com autoridade de coronel, Sinuca deu voz de prisão para o meliante, fazendo-o crer que havia cometido um delito grave. Seria levado para a cadeia pública em Alcântara. Mas como o pobre homem implorasse, dizendo que tinha mulher e filhos, etc., a autoridade comutou a pena de prisão para trabalho comunitário. Ordenou que o “emporcalhão” limpasse tudo. Foram os dois até um terreno próximo. Cortaram uma folha de bananeira e, com ela, o meliante fez todo um trabalho de limpeza, deixando a rua como estava. Feito o serviço, Sinhuca mandou que o homem fosse jogar no mar. Felizmente estava meia maré de vazante, não precisavam andar tanto. Desceram rua em direção à Fábrica Cânhamo, ganharam a prainha. A autoridade caminhava a “barlavento”, para não “sentir a catinga”. Um pescador quis saber o que era. Mas Sinhuca desconversou. Foram até a beira d’água. O homem lançou a obra perto de um bando de tralhotos. Lavou bem as mãos. Pediu um cigarro, mas foi negado. O Guarda deu ordem para o homem ir direto para casa. Temendo uma mudança na pena, ele correu para a Praça do Cemitério, subindo a ladeira da Madre-Deus como se fosse um jumento atrás de uma jumenta no cio. Sinhuca subiu devagar a ladeira, certo de que cumprira, nessa tarde, a missão para a qual tinha sido nomeado.  

sexta-feira, 26 de maio de 2017

MARIANO E MIZOCA COMO ASSOMBRAÇÃO



 Dino de Alcântara

Dizia o velho Ziquié que não se nega um armador de rede nem para um cachorro, que dirá para um cristão. Embora não fosse exatamente um seguidor do Messias, Mizoca acabou ganhando não só um armador, mas também rede lavada, lençol, comida, café, merenda, etc. na casa do Mariano. Ainda que contrariado, por saber que o menino não era exatamente um bom visitante, desses que pedem para ajudar em tudo em casa, aceitou dar agasalho por uma ou duas semanas. Sobretudo, porque fora um pedido de dois afilhados muito queridos: Franciline e Zeca. No primeiro dia, houve má vontade de Mizoca. Tudo bem que tinha pouca idade, apenas 11 anos, mas bem que poderia, na visão do anfitrião, lavar ao menos o próprio prato. Não fez. Deixou tudo em cima da mesa. À noite, diante de pouca comida, Mariano viu um hóspede faminto, devorando, com voracidade de um abade, o camarão cozido. Durante à noite, mais de uma vez viu-se obrigado a sair da zona profunda do sono por conta do ronco violento de Mizoca. Tentou em vão colocar o lençol sobre o ouvido. O ronco era tão brutal que ultrapassava até o mais grosso dos tecidos. No dia seguinte, o hóspede pilhou uma penca de banana roxa, vinda do bananal de Pantaleão, e, com o auxílio de uma cuia de farinha, devorou três unidades, deixando as mais “xoxinhas” para o dono da casa. Na segunda noite, o mesmo problema. Da sala vinha um ronco esquisito, semelhante a um bicho, capaz de fazer medo até ao mais corajoso dos moradores do Cujupe. Na terceira noite, Mariano deitou-se depois das oito horas, disposto a trilhar o sono dos justos até às cinco horas, sem interrupção. Precisava desse descanso. Mas, às três horas da madrugada, acordou com um pressentimento estranho. Parecia que o espiavam. Olhou para um lado e outro do quarto. Nada. Não era possível. Pensou em fantasma. Fez o pelo sinal da cruz. Disse um “te-esconjuro” seco. Mas a sensação estava presente. Foi aí que teve a ideia de acender um fósforo. Pegou a caixa e riscou um palito. Acendeu a lamparina, e de pronto clareou o quarto, chamado pelos mais velhos de cambra – corruptela do vocábulo lusitano câmara (quarto de dormir).  Elevou um pouco a chama. Nada. Não havia um vagalume no quarto. Não era possível. Foi nesse que momento que ouviu um ruído vindo de cima da parede. Entre a sala, onde estava a rede de Mizoca, e o quarto, havia uma parede que não alcançava o teto. Havia um travessão de uma parede lateral a outra, de maneira que ficava um vão entre o travessão e a cumeeira. Mariano levou a lamparina para o alto e o que viu o deixou assombrado, com batidas tão aceleradas no coração que teve um pavor horrendo. Pensou tratar-se de uma congestão. Estava Mizoca escanchado sobre a parede como se estivesse montado num dorso de um elefante. Perguntou o que ele fazia lá em cima da parede. Mizoca não respondeu, mas fez um gesto que deu a nítida certeza de que não habitava mundo dos cristãos. Pôs os dois dedos mindinhos na boca, cada um de um lado extremo, puxando as bochechas para imitar a bocarra de um sapo. Os dedos médios (pais-de-todos) ele encravou nas narinas. E os dois indicadores (fura-bolos) ficaram nos cantos dos olhos, repuxando para esbugalhar bem a vista. O rosto de Mizoca, que não tinha uma boa aparência, ficou semelhante a um abantesma. Mas fez mais. Sem tirar os dedos da boca, das ventas e dos olhos, colocou quase um palmo de língua para fora e, usando as cordas vocais, soltou um ruído estranho: “uuuurrrrrr”. Mariano se benzeu mais uma vez e tentou dormir, cobrindo-se todo, do dedão do pé à cabeça. Não conseguiu pregar os olhos. Sem abrir as pálpebras, Mariano sabia que o “diabinho” estava escanchado na parede no alto. Na manhã seguinte, lá estava Mariano na casa de Chico, negociando com os parentes a “devolução” da visita. Só assim passou a dormir tranquilo de novo.

terça-feira, 16 de maio de 2017

BAZILHA E O CACHORRO JAPÃO



 Dino de Alcântara
 
Ter cachorro em casa é uma atitude humanitária, de certo modo, ou uma atitude de segurança, haja vista que, numa terra cheia de raposas, oncinhas, entre outros animais comedores de galinhas, é necessário ter um cão para afastar os predadores. Assim, Bazilha adotou um cãozinho. Deu a ele o nome de Japão, por ter uns olhos um tanto parecidos com os (olhos) dos orientais. Quando pequeno, era o xodó da casa. Latia, corria atrás dos donos, etc. Mas, à medida que foi crescendo, foi ficando esguio, estranho. Algumas noites, Bazilha até se assustava com o cachorro.
Chamado para ver o animal, Zé Preá fez uma reza que pouco adiantou. O bicho continuava estranho. Latia para o nada. Às vezes, latia tão forte, que dava a impressão de ter alguém rondando a casa. Uma noite, Bazilha sonhou que o Japão era um cão do mal. Seus olhos, no sonho, faiscavam como duas curacangas numa noite escura. Acordou sobressaltada. Tomou uma decisão. Difícil, mas decidiu por sacrificar o bicho. Não podia mais continuar desse jeito. Quando dormia sozinha, tinha medo dele. Para a empresa, contratou dois cabocos valentes, dispostos, sem medo: Saturninho e Jonoro. A velha traçou todo um plano de segurança. Eles levariam o cão para o Santana e o matariam por lá. Assim, estaria livre de um remorso. Do contrário, se visse o animal morto, poderia, inclusive, sonhar com ele. No dia aprazado, os dois cabocos pegaram uma corda, laçaram o animal, prenderam-no e o levaram de casco para o outro lado do Rio do Cujupe. Lá trataram de sacrificá-lo. Jonoro foi o médico legista e atestou a morte. Cumprida a missão, quiseram enterrar, mas Saturnino não quis. Apenas colocaram umas folhas secas por cima. Feito o serviço, cambaram para o Porto do Cujupe. Ao chegar, satisfeitos pelo serviço rápido, já sentindo o gosto da Pitu que iam tomar no Aniceto, têm uma visão aterradora: debaixo de um cajueiro, sentado, lambendo as patas de trás, estava Japão. Os dois ficaram imóveis, mudos, sem esboçar o mais leve gesto. Até se benzeram diante do espanto e rumaram para casa. Nunca mais aceitariam um serviço desses. Bazilha, quando tomou ciência do que tinha acontecido, mandou fazer uma reza para espantar os maus espíritos. Nunca mais desejou matar um cão. Ele, depois, de três dias e três noites, foi embora para nunca mais sentar os pés na sua antiga casa nem no Itapeua. Nunca se soube o que de fato aconteceu com Japão.

domingo, 14 de maio de 2017

CHICO E O CURUPIRA



 Dino de Alcântara

Em meados dos anos 40 do Século XX, havia depois a campina a casa de João da Cruz, homem já na casa dos sessenta, mas ainda bem disposto para o serviço. Sua casa, pequena, tinha um dos quintais mais singulares do Cujupe: o capim verdejante no inverno e nos dias de lua cheia a maré vindo do Guariba.
Chico, numa noite de abril, foi até a casa do morador e com ele proseou um bom tempo, tomando uma boa xicara de café, enquanto o anfitrião trançava um cofo de alqueire.
A lua já marcava oito horas, quando o morador do Itapeua resolveu atravessar a campina em direção à ladeira grande. Chegando ao começo da subida, bastante íngreme e escorregadia, devido às chuvas da tarde, algo o impede de subir. A princípio, imaginou tratar-se de uma tontura ou canseira. Mas logo percebeu que era algo fora do seu corpo. Voltou dois passos e acelerou o pé para frente, mas, no mesmo ponto, esbarrou numa cerca invisível. Tentou gritar, mas a língua ficou presa no céu da boca. Não conseguiu senão produzir um grunhido. As pernas ficaram bambas, dormentes, um calafrio percorreu o corpo todo. Um zunido no ouvido direito. Logo em seguida, veio a impressão de ter ouvido uma risadinha perto de um marajazeiro. Mas uma vez tentou gritar, em vão. Não saía nada de som. Pela terceira vez, tentou avançar. Nada. Uma força o impedia de seguir. Olhou para trás. O clarão da campina. Um uivo forte cortou aquela mata fechada. Um vulto de um homenzinho saiu correndo de um lado para outro. “Curupira!” Arregalou os olhos. Virou novamente e viu a claridade. Numa fração de segundos, saiu em disparada rumo à casa do João da Cruz. Chegou trôpego, sem “um farelo de ar”. Minutos depois, Chico, armado até os dentes, voltava disposto a quebrar o lombo dos curupiras. Trazia uma faca, um cacete de urucurana e uma lamparina. Ao adentrar a mata que formava a subida da ladeira do Itapeua, preparou o cacete para meter nas costas dos safados, mas um misto de decepção e derrota afloraram no seu semblante. Não havia ninguém por ali. Ainda gritou: “Se forem machos, venham pro caminho!”, mas só uma coruja, no alto da mangueira xarope, parece que ouviu esse desafio. Chegou ao topo sem esbarrar em nada. Um cachorro de Mariano latiu alto, mas foi logo reprovado pelo homem. Nessa noite, um curupira safado pulou no Chico várias vezes, num pesadelo que ele teve pelas três horas da madrugada.