terça-feira, 13 de agosto de 2019

HISTÓRIA DE PAIACO





 Dino de Alcântara
Raimundo Paiaco foi o melhor contador de histórias do Cujupe e de toda a região do Litoral e da Baixada Maranhense. Boca da noite, depois de um jantar servido pela companheira Luísa, ia prosear na casa de Mundica de Ziquié. Para lá corriam muitos outros moradores, ávidos de uma boa conversa e de uma xícara de café torrado em casa. Quando as crianças estavam abancadas, pediam a Raimundo que contasse uma de suas histórias. E eram milhares. Raimundo pensava, pensava e logo iniciava uma, quase sempre sem dizer que já estava narrando. Aos ouvidos dos desatentos, tratava-se de um caso verídico acontecido a algum compadre pelas bandas do Raimundo-Sul. Numa noite, após França tanto pedir ao mestre, ele disse aos ouvidos atentos:
 – Zé de Filomena disse na casa de Siriba Seca que tinha um sujeito tão preguiçoso em Mamorana de nome Zé Praxedes, que já nem tinha onde morar. A casa era tapada de pindova braba, com coberta velha, goteira para todos os lados. Para comer, nem uma cuia de farinha d’água. Os vizinhos é que se compadeciam dele, levando de quando em quando um pirão de bagrinho, uma tigela de juçara, quando era tempo, ou de buriti. Assim Zé Praxedes ia passando. Uns fiapos de roupa para cobrir o corpo. Muita gente das bandas de lá já estavam convencidos de que o jeito era enterrar o homem. Beiço Rachado é que dizia: “Nada de enterrar homem vivo! Deus há de encontrar um caminho para salvar o cristão!”. Mas esse dia não chegava. Era assim todo dia: de manhã um tiquinho de café com farinha d’água, meio dia um pirão, à tardinha, outro pirão ou um mingau, que os vizinhos levavam. Até que o próprio Beiço Rachado concordou com os moradores: enterrar o infeliz no cemitério do Cajueirinho. Era só marcar o dia. Marcaram para o dia de finados mesmo.  Zé Baé e Sertão foram na frente cavar a sepultura, quase dentro de mato, para não se misturar com os outros túmulos.  Liderados por Beiço Rachado, foram mais de dez homens e mulheres ao casebre do infeliz dar a notícia do seu enterro. Ele ouviu tudo em silêncio. Depois, pediu um cigarro, acendeu, deu duas baforadas, levantou a cabeça e disse: “se é assim, vamos”.  Amarraram a rede do miserável num pau bem firme e saíram no cortejo. Beiço Rachado com ar triste olhava para o “defunto”, com a consciência de quem fez de tudo para salvar uma alma. Já perto do bacurizeiro de Januária, um vizinho foi tomado de comoção: “O que levam aí?” Disseram que era Zé Praxedes que ia ser enterrado vivo por não ter mais coragem para nada, nem para tomar banho na fonte, que dirá plantar uma macaxeira. “Por isso não”, disse o condoído vizinho, “eu tenho um paneiro de arroz e posso dar pra ele. Assim não precisa enterrar o infeliz!” Zé Praxedes, que até então escutava a conversa sem nada esboçar, inquiriu a alma bondosa: “O arroz está pilado?” O homem respondeu que não. E, olhando os que participavam do cortejo rumo ao Cajueirinho, disse: “Então pode seguir o enterro!”

sábado, 20 de julho de 2019

VIAGEM PARA A ETERNIDADE







Dino de Alcântara



Nascido da união de uma mulher forte, Cornélia Marques, e de um músico sonhador do Jacioca, João Costa, Inácio vem à luz num inverno rigoroso de 1928, quando os rios e riachos estavam completamente cheios. O lugar era significativo: Experimento, Pinheiro – daí o nome do padroeiro na criança.
O casal teria mais dois filhos: João e José, até que a morte calasse um dos músicos mais encantadores de toda a região. Ficou a viúva com três pequenos filhos. Inácio teve cedo a grande lição da vida, ensinada pelo grande poeta Gonçalves Dias: a vida é combate, que os fracos abate. Para suprir as necessidades básicas, o primogênito teve de trabalhar duro. Os dias se tornaram pequenos para tamanha vontade de manter a casa em ordem, para que os pequenos não passassem fome.
Vendo aquela morena de olhos perscrutadores, Manico Abreu se encantou. Desse encanto, vieram mais três crianças: Newton, Manoel e Nélio. Inácio trabalhou mais ainda para sustentar a todos.
Cresceu o menino. Um belo dia, passa pelo Centro da cidade de Pinheiro e vê uma cama na loja dos Santos. Trabalhou mais ainda, inclusive em curtume, para poder comprar e dar à mãe um presente tão importante. Seria a primeira vez que a matriarca descansaria numa cama. Seria um dos dias mais felizes da vida dele.
Mais tarde, um voz rouca sussurrou nos ouvidos dos irmãos que eles estavam trabalhando para enriquecer o primogênito. Inácio soube e, com profunda tristeza, decidiu que era hora de rumar para novos caminhos. Deixou tudo que possuía, gado, casa, roça, etc. para os irmãos e veio tentar a sorte na Capital.
Descobriu, pelas palavras de uma tia, que não se constrói nada sem uma grande mulher ao lado. Pelas andanças pelos povoados de São Bento, se encontrou com uma das mais belas moças da baixada: Domingas. Rompeu barreiras, inclusive em casa, e se uniu àquela que seria sua companheira de uma vida inteira.
Em 55, quando a cidade de São Luís clamava por obras e por transformações, estavam os dois tentando construir uma família, o que só em 1959, com o nascimento da primeira filha: Maria dos Remédios, a união estaria concluída.
Na década de 60, vieram os outros filhos: Rute, Cornélia (que logo ao nascer seria a sua escolhida, inclusive recebendo o nome da avó), Lília, Idenes, Idenir e Inácio Júnior. Nos anos 80, vieram os dois mais novos: Isaías e Israel.  
Depois de construir um lar e uma família, não descansou e começou tentar melhorar a vida de muitos que o procuravam, tanto de sua família como da família de Domingas. Raro era o mês em que não havia pelo menos uns cinco parentes em sua casa, dormindo apertado, mas com um armador amigo para repousar.
Para manter essa grande família que se gerou em torno deles (Inácio e Domingas), ele teve de trabalhar de sol a sol. Teve diversas profissões: mecânico, construtor, chofer, pedreiro, carpinteiro, alfaiate, pintor, sapateiro, empresário, madeireiro, entre muitas outras. Foi convidado para ministrar aulas na antiga Escola Técnica, mas seu espírito avesso à burocracia o fez desistir da docência.
Lutou sempre pela justiça e pela honradez da família. Nunca enganou um só cidadão que lhe procurou para realizar algum serviço. Certa vez, dirigindo um caminhão, viu um carro preso às areias da praia do Olho d’Água. Não perguntou quem era, tratou logo de tirar o veículo. Só depois descobriu que se trabalha da filha do governador. Ela perguntou quanto teria sido o serviço. De pronto Inácio respondeu: “Apenas o seu reconhecimento. Quando lhe perguntarem, diga sempre que tem homem sério no Maranhão!”. Dias depois, chegou à Fé em Deus um portador com um envelope no qual estava escrito: “Para um homem sério e trabalhador, uma pequena contribuição!”.  
Idealizou para todos os filhos um caminho a seguir. Exigiu firme que cada um estudasse para ser o melhor na escola. Queria mostrar a todos que filho de pobre também podia entrar numa universidade. Assim foi assistindo, a cada ano, os seus ingressarem nos meandros da vida acadêmica e profissional.
Certa vez, alguém que chegou do Rio de Janeiro disse a ele que uma de suas filhas – a mais querida – trabalhava duro num emprego simples na antiga capital da República. Não conseguiu mais dormir direito. Tirou uma semana de férias e viajou ao Rio. Ao se encontrar com a filha, disse a ela que voltasse a São Luís. Na Ilha dos Amores, teria muito sucesso e faria carreira. Esse gesto de amor, marcaria a vida de Lélia para sempre. Voltou e, como Inácio tinha planejado, construiu uma carreira brilhante.
Um grande abalo na vida em 2014: a grande companheira se despede da vida. Uma solidão se abate. Mas as filhas, os netos, os genros, os amigos cobram a velha postura, desde a infância. Tira forças do âmago e resiste a tamanha dor.
Chega aos 90 anos, com uma bravura, uma vontade de viver imensa, que outros de 60 anos não têm. Olha a vida e pensa: “Tudo foi planejado. Nada saiu sem que eu pensasse o contrário”.
A família sempre foi o seu maior bem. E demonstrou isso em muitos momentos. Chorou dolorosamente quando veio a notícia da morte de um dos irmãos mais queridos: Newton. Chorou quando os outros irmãos foram se despedindo da vida. Chorou quando a mãe, guerreira, foi embora. O espelho de sua vida. Mas a dor era suplantada pela vontade de viver. E Ninguém mais do que ele desejou viver, ninguém mais teve tanta vontade de acompanhar a trajetória da vida.
Agora, neste ataúde, cercado pela família, pelos parentes, pelos amigos, pelos admiradores, repousa seu sono eterno. Cumpriu tudo a que se destinou. Se pudesse falar, diria a todos que voltassem para suas casas com energia, com vontade de viver, de construir, de ajudar a quem necessita. Diria a todos nós que sigamos o seu exemplo de vida. Se tivesse lido o poeta, diria a: “Não chores, meu filho; Não chores, que a vida é luta renhida: Viver é lutar”.
E eu, na hora em que a urna é lançada na sua última morada, ao lado de sua companheira, ouço a minha consciência gritar:
– Inácio Costa!
E uma voz no meu coração responde:
­– Presente.
  

domingo, 2 de junho de 2019

RADIADO


Dino de Alcântara 
 
Radiado era um dos meninos mais endiabrados do Cujupe. Engatinhou antes do tempo. Andou antes do esperado. Mamou até quando a mãe botou pimenta malagueta nos seios. Quando aprendeu a subir nas árvores, prática comum aos moradores do Cujupe, ninguém o pegava nas brincadeiras de pega-pega. Subia nos cajueiros, na pitombeira do quintal, no oitizeiro da porta da rua do padrinho, nas ingazeiras, nas goiabeiras, nas juçareiras da baixa, etc. Certa vez, tentando se lançar de um galho para outro da pitombeira, caiu e quebrou um braço. De outra feita, sem o pai perceber, montou do boi e deu ordem para o animal sair correndo. Na curva do caminho do Jordão, caiu e quebrou a perna.
A mãe e o pai pediam a Deus que intercedesse por eles, olhando e dando juízo a Radiado. Funcionava durante uma semana, mas o endiabrado menino aprontava das suas.
Um dia, quando a mãe havia preparado um cozido de peixe, num caldeirão bem grande, Radiado perguntou o que era a comida.  A mãe disse que era bagre e bandeirado com caju azedo. O caldeirão estava ainda no fogo, o caldo fervendo, pois as brasas, entre as itacurubas, não o deixavam esfriar. Radiado tentou subir no fogão, mas não conseguiu, então colocou um mocho para espiar. Teve certa dificuldade para mirar o peixe, por isso tentou com um pano puxar a borda do caldeirão para perto de si; foi o bastante para que todo o peixe viesse a pique, derramando o caldo sobre a barriga. Todos o acudiram, lançando água fria sobre o queimado. Tarde demais. Toda a pele do peito ao baixo ventre foi perdida, mas como era jovem nasceu de novo. A partir desse dia, pegou o apelido de Bucho Novo.
Já quase adulto, começou o vício da bola e do grode. A mãe sempre ralhava, sobretudo quando bebia conhaque ou cachaça.
Um belo dia, depois de uma partida na Salina da Campina, foi com três companheiros à Quitanda do Aniceto tomar um grode de Pitu. Quando voltou, com cheiro do aguardente, sujo do jogo, a mãe reprovou o ato, dizendo que odiava a cachaça. Ouvindo isso, se escondendo atrás do avô, que fora visitar a filha, Radiado disse:
– Por isso que não vim convidar a senhora, porque eu sabia que não ia querer tomar um grode na casa do Aniceto.   

quarta-feira, 8 de maio de 2019

A cachaça e o caranguejo

Em um adorável mês de maio, por volta do ano de 2009, o casarão do Cujupe encontrava-se cheio dos Cavalcantes. Lembro-me como se fosse ontem, um Classic preto entrando pela gigante porteira, porém só um lado do portão estava aberto. A tampa da mala já vinha aberta com um enorme som troando e a buzina papocando. O motorista do carro tomou dois copos de café fresco feito pela adorável Rosinha e se atirou a beber cerveja. Por volta das 9:30 da manhã, optaram por ter caranguejo no almoço.
Pauleta e Quicão se aprumaram com cofos. O dono do carro preto e seu sobrinho da sobrancelha grossa foram a cozinha, pegaram uma garrafa de aguardente original de 51 e se dispuseram a encher dois pequenos frascos com esse elixir. Puseram uma das garrafas em um cofo e a outra, os quatro companheiros já foram entornando por uma trilha suja que até hoje passa pelo cajueiro azedinho em direção ao guariba.
Caranguejo estava bobando por causa de uma torrencial chuva que houvera na noite anterior. Rapidamente encheu-se os dois cofos, porém foi perceptível pelo tio e sobrinho que o almoço fora pegado mais rápido que a finalização do primeiro frasco do poderoso remédio. Começaram, todos os quatro, a colocar as mãos dentro do cofo. Os crustáceos beliscaram todos. Então, os quatro personagens se entreolharam e, sem dizer uma única palavra, foi chegado a um veredito. Fez-se um tipo de barreira, modelada pelas mãos de Pauleta, e soltaram todos os caranguejos. Voltou-se com cofo e meio neste dia e muita história para contar.

domingo, 4 de novembro de 2018

A FRIEIRA DE SERTÃO

Dino de Alcântara


Até os anos 80, o litoral e o interior do Maranhão viviam num abandono das autoridades sanitárias. Os governantes estavam mais preocupados com crescimento do PIB, geração de emprego e construção de obras, já que o Brasil vivia num atraso secular em relação à logística – estradas, aeroportos, ferrovias, portos, etc.
Muitos moradores do Cujupe andavam descalços, bebendo água não tratada, caminhando por vias em que porcos e outros animais também andavam. Dessa forma, eram comuns a verminose, a impingem e a frieira. Esta última acometia quase todos os moradores da zona rural do Maranhão.
Sertão foi uma das vítimas das verminoses. Pegou uma frieira, quando andava (descalço) pelo bananal de Mariano. Não soube bem  quando pegou, mas soube quando apareceu a maldita coceira entre os dedos do pé direito: numa sexta-feira de maio. Noite. Hora de dormir depois de um cozidão de bagre e pirão de farinha d’água. Deitou-se e sentiu uma vontade louca de coçar-se; primeiro com os dedos da mão, depois nos punhos da rede, em seguida com a ponta de uma faca. No dia seguinte, usou até pimenta malagueta para se curar. Tudo em vão. À noite, com o silêncio de tudo, era que a maldita mais gostava de infernizá-lo. Botou lama do Guariba, casca de siriba, leite de banana cacau. Nada. Já estava ficando preocupado. Foi então que teve a ideia de procurar Elisa. Certamente ela saberia passar um remédio tiro e queda para a maldita doença. Passou. Colocar o pé na água morna à noite, antes de dormir. Sertão foi para casa e mal pôde esperar o horário de dormir. Antes, rachou uma boa quantidade de lenha e colocou bastante água num caldeirão e atiçou por quase meia hora o fogo.  A água ficou em ponto de evaporação. Sertão experimentou com um dedo. Estava fervendo. Foi ao jirau e lavou bem o pé direito, como Elisa tinha falado, mas recusou a orientação da senhora experiente. Não quis água morna. Na cabeça dele, água morna não serviria. Teria que ser bem quente. Tirou o caldeirão das itacurubas e colocou no chão. Criou coragem e colocou um pé dentro da água fervente. Foi uma dor única. Nem quando havia cortado o pé com machado sentiu tanta dor. Ainda ficou por três segundos até os vermes morrerem. Só então retirou. Percebeu algo estranho: o pé inteiro e mais uma parte da canela estavam que nem camarão piticaia – completamente vermelhos.
Naquela noite, Sertão não sentiu coceira no pé, mas não conseguiu dormir nada, com uma dor intensa.
Dois dias depois, estava curado da frieira, mas levou quase um mês para poder andar direito pelos caminhos do Cujupe.