segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

MARIANO E O RECENSEADOR



 Dino de Alcântara

Sempre que o Censo do IBGE aparecia para as bandas do Cujupe, os moradores ficavam sobressaltados, imaginando que, diante de um aumento da renda, as mercadorias poderiam aumentar mais do que já aumentavam.
Na casa do Mariano, o homem do Censo chegou perto das onze horas de uma quinta-feira. Já tinha passado por outras casas do povoado, sempre anotando numas folhas que guardava com cuidado. A primeira pergunta que fez, considerando o jeito da casa, tudo no lugar, rádio grande, rede bonita, etc., foi sobre a renda, isto é, se era aposentado e se recebia uma ou duas aposentadorias. Mariano disse que só uma – “E olhe lá!” Como estava com roupa de roça, pediu licença ao recenseador para se trocar. Foi caminhando em direção ao quarto, mas antes que entrasse, retirou a bermuda de trabalho. Como estava desprevenido, o funcionário do IBGE pôs vista em suas vergonhas. Como era do tipo que atracava de popa, no dizer de Tralhoto, forçou bem a vista para ver direito, meio espantado com a grandeza macha.
Meia hora depois, terminado o questionário, o recenseador guardou todos os papeis, apertou a mão do morador e, com um risinho sem vergonha nos lábios, olhando para as partes de Mariano: “Você merecia ter duas aposentadorias!”

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

OS PECADORES E SEUS PECADOS




 Dino de Alcântara
 

Desde a aquela fatídica noite de quinta-feira, na Pensão da Dona Cotinha, no Portinho, em que havia conhecido a Du Carmo, vinda das brenhas de Buriticupu, Felipe de Paulo andava de esguelha em casa, com medo de descobrirem o “pecado”. Quando ia urinar, ia para as bandas da mangueira de sumo, para ninguém perceber o seu gemido diante da dor. Estava com formigamento, expelindo pus sempre que esvaziava a bexiga. Com receio, sem o conhecimento necessário, ia levando esse tormento até quando Deus quisesse.
Assim, na festa de Zuza, no Sete de Setembro, ainda estava com a “bicha no corpo”. Depois de uns goles de Cerma, enfrentava o sacrifício de aliviar-se perto de uma touceira de banana cacau. Percebendo o “mal” do amigo, Moscote saiu atrás de Felipe. Mal este puxava o cinto, começava o suplício. Moscote chegou mais perto e deu sinais de que também se aliviaria.
MOSCOTE – Como é, Filipe? Tá acagibado aí?
FELIPE – Siô, desde que pulei numa pequena em São Luís, estou assim. Botando pus toda hora.
MOSCOTE – Eu sei o que é isso. Sinto dor sempre. Estou com hemorroida doida. Toda vez que vou no mato, é aquela aflição. Não sai pus, mas sai sangue aqui atrás.
FELIPE (Apontando para o pênis) – É, meu velho, cada um paga o seu pecado por onde pecou!

terça-feira, 22 de agosto de 2017

A CURACANGA



Dino de Alcântara

Naquela sexta-feira de um agosto seco, que deixava Pedro Leitão preocupado com o plantio de maniva no Sangal da Baixa do Meio, Moscote saiu da casa de João Coelho no Raimundo-Sul. O sol começava a esmorecer. Era tardinha. Bem que Madalena de Gregório do Tijupá avisou para ele não viajar uma hora dessas, porque só chegaria ao Cujupe altas horas da noite. E, como era sexta-feira, alguma maldição poderia aparecer. Moscote só disse um Quá! Tomou uma xícara de café com beiju de tapioca grossa e cambou para a estrada do Camuritiua. Chegou perto do Itamatatiua com noite fechada. Apressou o passo. Perto da casa de finado Biné, ouviu um assobio medonho para os lados da fonte. Começou a pensar em outras coisas. Lembrou-se dos seios de Maricoco, do dia em que esteve quase a tirar a roupa de Tereza na festa de Ponciano. Foi novamente chamado à estrada por um raio que cruzava o céu. Era estranho porque não havia um pingo de sinal de chuva. Parou numa touceira de milhã e aliviou a bexiga. Alcançou o ramal do Camuritiua já noite alta. Umas estrelas brilhantes alumiavam com o auxílio de um pinguinho de lua. Subiu a ladeira que leva para Alcântara. Quando chegou à Tiquara, saiu da estrada e entrou no caminho, perto da casa de João Severo. Andou mais uns passos, viu um rasgo no céu. Pensou que era vista cansada. Estava olhando coisas. Deixou a  ladeira rumo à casa de Zé Formiga. Outro clarão no céu. Fez o Pelo Sinal e apressou os passos. Um susto o fez paralisar da cabeça aos pés. Uma bola de fogo enorme vinda das bandas do Tatuoca. Veio como se fosse um bicho a motor. Moscote entrou no mato e se escondeu debaixo de uma ingazeira. A bola de fogo passou perto do olho de uma palmeira. Ele se arrepiou todo. Um batimento cardíaco acelerado fez o homem imaginar que ia ter um ataque do coração. Não passou dez minutos, ele agachado debaixo da árvore, a bola de fogo voltou. Viu bem perto. Não havia dúvida. Era uma curacanga. Começou a rezar, mas uma reza em voz baixa, porque os dentes batiam um no outro. Não podia seguir em frente. Se aparecesse no caminho, a curacanga poderia matá-lo. Mais uma vez ela cortou o céu. Desta vez tão baixa que quase pega no olho da ingazeira. Nesse momento, de reza, medo e reflexão, um ato de coragem iluminou-lhe o cérebro. Tirou uma faca da cintura.  “Sim. Esta faca nunca cortou nada. É uma faca virgem!” Meteu a faca na terra e deu três voltas nela no sentido contrário aos ponteiros do relógio, como disse Caniludo. A bola de fogo saiu em disparada para as bandas do Camuritiua. Moscote esperou mais uma boa hora para ter certeza de que a bicha não vinha mais. Tentou se levantar, mas as pernas com câimbra não ajudaram. Fez força para se pôr de pé. Nada. Parecia uma galinha com as pernas presas por embira. Foi se encostando na inzazeira até quase se deitar. Esperou um bom tempo nessa posição. Galo começou a cantar para os lados do São Maurício. Esperou mais tempo. Quando a cantoria começou a se espalhar e no céu os primeiros sinais da manhã começaram a aparecer, Moscote se levantou, fez mais um Pelo Sinal, rezou um Pai-Nosso, um Credo, uma Salve-Rainha, que Maria Castro lhe ensinara, e ganhou, protegido de tudo, até de visagem, o caminho do Cujupe.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

FOLEIRO E O CAIXÃO NA ENCRUZILHADA



 Dino de Alcântara
No grande romance da Literatura Brasileira – Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa –, Riobaldo faz ou acredita fazer um pacto com o demônio numa encruzilhada. No Cujupe, dos tempos idos e vividos, foi numa encruzilhada que Cancão uma vez viu um porco enorme, tão feio, que na sua vista era uma assombração.
Por sua vez, Foleiro (no batistério, José Raimundo) dizia nas rodas de conversa que no dia em que olhasse um caixão numa encruzilhada iria mirar para saber o que havia dentro.
E assim, numa noite de maio, depois de várias partidas de baralho na casa de Aniceto, os competidores saíram cada um para a sua casa. Foleiro era o único que tinha de ir para o sítio de Mariano Mata-Gato. Ao chegar à encruzilhada do caminho para a casa de Felipe de Paulo, avistou, a uns dez passos, um caixão com quatro velas acesas. Ficou perplexo com a miragem. Não eram velas comuns, eram velas de defunto, grandes, duas na cabeceira e duas na outra parte. Foleiro empacou. De súbito, teve um ímpeto. Dirigiu-se afoito para o caixão e o examinou. Nessa hora, uma visão estranha encantou-o. Saiu em disparada no escuro. Entrou num bananal, saiu numa capoeira, desceu uma gruta, subiu um barranco. Passou por dentro de uma roça de mandioca. Ganhou o caminho da Ostra, entrou novamente no mato para os lados da Matinha e se perdeu no matagal fechado.
Em casa, os familiares deram pela falta de Foleiro logo depois da meia-noite. Era estranho que até aquele momento não tivesse chegado. Cachopa foi mais Sabino à casa de Aniceto. Tudo fechado. Não havia dúvida: Foleiro tinha sido encantado por uma assombração. Faltava saber duas coisas: quem tinha assombrado – se Curupira, Mãe-d’água, Curacanga – e onde ele estava. Nessa madrugada, quase todos os familiares saíram munidos de lanterna, farol, lamparina, pedaço de pau, patacho, etc. atrás do assombrado.
Passaram a noite toda em desespero. Foram encontrá-lo depois das oito horas, desmaiado numa raiz de um bacurizeiro na Matinha, já perto da Ilha Grande. Foi levado para casa na rede. Indagado sobre as causas do ocorrido, disse apenas que desde que tinha saído da casa de Aniceto, depois do jogo de baralho e avistado um caixão, aproximando-se dele para mirar dentro, não se lembrava de nada. Levou três dias e três noites com febre e calafrio. Foi bento (benzido, no entender de Cachopa) três vezes por Maria Castro. Desde esse dia, ninguém passava mais nessa encruzilhada sem um temor horrível de assombração.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O REFASTOLO

 Dino de Alcântara

Toda sociedade se constrói sobre mitos e lendas. Daí resulta sua cultura, sua evolução, sua civilização. Foi assim com os povos antigos, Egípcios, Gregos, Judeus, entre outros. Por mais primitiva que seja uma tribo, um povoado, um grupo social, há uma série de histórias (não comprovadas pela ciência) que circulam de forma oral entre os integrantes de grupo.
Moisés, séculos antes da Era Cristã, se debruçou sobre uma infinidades de mitos para construir a história de um povo. Sabia, do alto de sua sapiência, que não se constrói um povo sem história, e a história precisa estar alicerçada nos mitos. Da mesma forma, Virgílio, na Roma antiga, construiu, sobre um mito, a história e a cultura do povo romano.
No Cujupe, três povos (índio, branco e negro) construíram uma infinidade de histórias, lendas, mitos. Uma dessas narrativas miraculosas é a do Refastolo.

Em idos de 1939, numa noite com um pingo de lua no céu, Zé Baé, saiu do Bom-que-dói em direção à casa de Cabeça Gorda. Era dia de uma ladainha, com direito a chocolate, bolo de tapioca, café, etc. Quando contornou a curva do caminho perto da casa de Nunilha, viu um vulto sair de trás de uma touceira de marajazeiro. Escuro, mas viu que se tratava de um bicho do tamanho de um gato. Realmente era um felino. Passou, cruzando o caminho, bem em frente de Zé Baé. Mais adiante, quase perto da Mangueira de Cheiro, plantada ainda no tempo de Paulo Costa, um cachorro cruzou o caminho numa direção contrário ao que o gato tinha atravessado. Deu para olhar bem a cara do bicho. Não latiu, não rosnou, nada. Zé Baé ficou imóvel, sem saber de quem era esse cachorro. Apressou o passo. Quando passou pela tapera de Vicente, um bode passou por ele, entrando no mato. Os cabelos arrepiaram, quis correr, mas as pernas ficaram meio bambas. Fez o pelo sinal, quis gritar, mas ficou com mais medo. Não deu trinta passadas, um garrote cruzou o caminho de novo. Todo branco. Nesse momento, Zé Baé se lembrou do famoso Refastolo. Não havia dúvida: era o diabo do bicho. A hora em que ficasse do tamanho de um boi feito, mataria o pobre homem e o levaria para as profundezas da escuridão. Retirou forças não se sabe de onde e saiu numa carreira que nem na época de garoto, fugindo de um boi de verdade, chegou a atingir tamanha velocidade. Felizmente, na casa de Ludegero, viu cachorro latindo e foi gritando: “Acode, cupade!” E invadiu o terreiro, indo pelo quintal. Ludegero abriu a mençaba da “cambra” que dava para a cozinha e avistou um assombrado Zé Baé. Parecia que tinha visto uma Curacanga. “Pior, cumpade! Tem bicho solto por aí. Doido é quem sai agora porta fora!”. Depois de uma conversa com o compadre, Ludegero armou uma rede na cozinha para Baé passar a noite. Esqueceu Ladainha, bolo, chocolate, café, reza, tudo. Nessa noite, quase toda com medo, embalando a rede para chamar o sono, mergulhou algumas vezes num mundo dos anjos. Numa dessas “viagens”, sonhou com um boi que vinha desembestado para matá-lo. 

quinta-feira, 8 de junho de 2017

O DESEMBARGADOR E O CÃO



 Dino de Alcântara

Nascimento de Moraes, no seu livro Vencidos e Degenerados, publicado em 1915, dá voz a um dos personagens mais singulares da Literatura Maranhense: Bento. Esse jornalista, como é chamado pelo narrador do romance, afirma, num brilhante artigo sobre a terra de Gonçalves Dias, que o Maranhão ainda vivia (vive para os mais pessimistas) a idade pré-ciência, em que os métodos científicos ainda não haviam sido introduzidos na “terrinha”. Ao contrário, as mezinhas é que curavam as pessoas ricas e pobres. No lugar de uma explicação científica, uma justificativa caseira, do senso-comum. O pião-roxo, o benzimento, etc. eram formas de tratamento das doenças maranhenses.
Em 2016, uma cena deixaria o ilustre maranhense do começo do Século XX intrigado com o pouco avanço da ciência entre nós. Um carro oficial do Tribunal de Justiça do Maranhão indo da Colares Moreira ao Reino Infantil. Dentro, além do motorista, um senhor bem vestido. Função pública: Desembargador. O carro preto se dirigia à escola para buscar o neto do magistrado. Mas algo interrompeu o caminho. Um cachorro vira-lata tentando expelir os restos que o intestino não quis aproveitar de uma comida de dois dias antes. O homem da justiça deu ordem para o motorista parar o carro, assim que percebeu a atitude do cão. Abriu o vidro esquerdo da porta de trás, observou bem o momento em que o animal fazia o esforço no abdômen. Quando percebeu que era a hora, cruzou, como se fossem dois anzóis, os indicadores. Quanto mais o cachorro se espremia, mas os dedos do Desembargador se contraíam. Não eram mais anzóis, mas duas argolas daquelas em que se vê nos guinchos que puxam grandes contêineres no Porto do Itaqui. O bicho, em vão, contraía os músculos do pescoço ao traseiro, numa atitude desesperada, esperando que a natureza ou São Lázaro (protetor dos cães) lhe desse a solução do problema. Sim, era um problema: estava constipado. Tentou mais uma vez. Dentro do carro, o desembargador estava com os dedos vermelhos, o rosto em brasa, os olhos esbugalhados, a língua para fora. E o motorista, tentando conter um risinho canalha. O cachorro abriu mais as pernas na esperança de atenuar a dor. Parecia uma anomalia. Deixou o traseiro bem perto do chão. O magistrado já quase com os dedos escapulindo um do outro, deu um jeito de, sem desfazer o nó, arrumar os indicadores de maneira que continuasse com o engate. Apertou mais, pois sentiu que o cão ia conseguir lançar fora os excrementos. O rosto era agora um misto de dor e alegria. Segurou por quase quarenta segundos a respiração. A língua descendo em direção ao queijo. A luta durou uns dois ou três minutos. Finalmente o cão, derrotado, desistiu. Saiu, cabisbaixo em direção a’O Imparcial. O Idoso, exultante, por ter conseguido vencer o animal. Sem um pingo de ar, fez um gesto que o motorista entendeu que deveria seguir em frente. Estava terminada a luta. O magistrado deu de capote no vira-lata. O carro seguiu seu trajeto. Estacionou em frente à escola. Entrou um garoto de treze, catorze anos. Foi embora. Um leitor mais perspicaz vai indagar, ao final do conto, o que tem essa história com o Cujupe. O narrador responde: a testemunha ocular do episódio era um “caboco” da terra de Manoel Cavalcante.