terça-feira, 22 de agosto de 2017

A CURACANGA



Dino de Alcântara

Naquela sexta-feira de um agosto seco, que deixava Pedro Leitão preocupado com o plantio de maniva no Sangal da Baixa do Meio, Moscote saiu da casa de João Coelho no Raimundo-Sul. O sol começava a esmorecer. Era tardinha. Bem que Madalena de Gregório do Tijupá avisou para ele não viajar uma hora dessas, porque só chegaria ao Cujupe altas horas da noite. E, como era sexta-feira, alguma maldição poderia aparecer. Moscote só disse um Quá! Tomou uma xícara de café com beiju de tapioca grossa e cambou para a estrada do Camuritiua. Chegou perto do Itamatatiua com noite fechada. Apressou o passo. Perto da casa de finado Biné, ouviu um assobio medonho para os lados da fonte. Começou a pensar em outras coisas. Lembrou-se dos seios de Maricoco, do dia em que esteve quase a tirar a roupa de Tereza na festa de Ponciano. Foi novamente chamado à estrada por um raio que cruzava o céu. Era estranho porque não havia um pingo de sinal de chuva. Parou numa touceira de milhã e aliviou a bexiga. Alcançou o ramal do Camuritiua já noite alta. Umas estrelas brilhantes alumiavam com o auxílio de um pinguinho de lua. Subiu a ladeira que leva para Alcântara. Quando chegou à Tiquara, saiu da estrada e entrou no caminho, perto da casa de João Severo. Andou mais uns passos, viu um rasgo no céu. Pensou que era vista cansada. Estava olhando coisas. Deixou a  ladeira rumo à casa de Zé Formiga. Outro clarão no céu. Fez o Pelo Sinal e apressou os passos. Um susto o fez paralisar da cabeça aos pés. Uma bola de fogo enorme vinda das bandas do Tatuoca. Veio como se fosse um bicho a motor. Moscote entrou no mato e se escondeu debaixo de uma ingazeira. A bola de fogo passou perto do olho de uma palmeira. Ele se arrepiou todo. Um batimento cardíaco acelerado fez o homem imaginar que ia ter um ataque do coração. Não passou dez minutos, ele agachado debaixo da árvore, a bola de fogo voltou. Viu bem perto. Não havia dúvida. Era uma curacanga. Começou a rezar, mas uma reza em voz baixa, porque os dentes batiam um no outro. Não podia seguir em frente. Se aparecesse no caminho, a curacanga poderia matá-lo. Mais uma vez ela cortou o céu. Desta vez tão baixa que quase pega no olho da ingazeira. Nesse momento, de reza, medo e reflexão, um ato de coragem iluminou-lhe o cérebro. Tirou uma faca da cintura.  “Sim. Esta faca nunca cortou nada. É uma faca virgem!” Meteu a faca na terra e deu três voltas nela no sentido contrário aos ponteiros do relógio, como disse Caniludo. A bola de fogo saiu em disparada para as bandas do Camuritiua. Moscote esperou mais uma boa hora para ter certeza de que a bicha não vinha mais. Tentou se levantar, mas as pernas com câimbra não ajudaram. Fez força para se pôr de pé. Nada. Parecia uma galinha com as pernas presas por embira. Foi se encostando na inzazeira até quase se deitar. Esperou um bom tempo nessa posição. Galo começou a cantar para os lados do São Maurício. Esperou mais tempo. Quando a cantoria começou a se espalhar e no céu os primeiros sinais da manhã começaram a aparecer, Moscote se levantou, fez mais um Pelo Sinal, rezou um Pai-Nosso, um Credo, uma Salve-Rainha, que Maria Castro lhe ensinara, e ganhou, protegido de tudo, até de visagem, o caminho do Cujupe.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

FOLEIRO E O CAIXÃO NA ENCRUZILHADA



 Dino de Alcântara
No grande romance da Literatura Brasileira – Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa –, Riobaldo faz ou acredita fazer um pacto com o demônio numa encruzilhada. No Cujupe, dos tempos idos e vividos, foi numa encruzilhada que Cancão uma vez viu um porco enorme, tão feio, que na sua vista era uma assombração.
Por sua vez, Foleiro (no batistério, José Raimundo) dizia nas rodas de conversa que no dia em que olhasse um caixão numa encruzilhada iria mirar para saber o que havia dentro.
E assim, numa noite de maio, depois de várias partidas de baralho na casa de Aniceto, os competidores saíram cada um para a sua casa. Foleiro era o único que tinha de ir para o sítio de Mariano Mata-Gato. Ao chegar à encruzilhada do caminho para a casa de Felipe de Paulo, avistou, a uns dez passos, um caixão com quatro velas acesas. Ficou perplexo com a miragem. Não eram velas comuns, eram velas de defunto, grandes, duas na cabeceira e duas na outra parte. Foleiro empacou. De súbito, teve um ímpeto. Dirigiu-se afoito para o caixão e o examinou. Nessa hora, uma visão estranha encantou-o. Saiu em disparada no escuro. Entrou num bananal, saiu numa capoeira, desceu uma gruta, subiu um barranco. Passou por dentro de uma roça de mandioca. Ganhou o caminho da Ostra, entrou novamente no mato para os lados da Matinha e se perdeu no matagal fechado.
Em casa, os familiares deram pela falta de Foleiro logo depois da meia-noite. Era estranho que até aquele momento não tivesse chegado. Cachopa foi mais Sabino à casa de Aniceto. Tudo fechado. Não havia dúvida: Foleiro tinha sido encantado por uma assombração. Faltava saber duas coisas: quem tinha assombrado – se Curupira, Mãe-d’água, Curacanga – e onde ele estava. Nessa madrugada, quase todos os familiares saíram munidos de lanterna, farol, lamparina, pedaço de pau, patacho, etc. atrás do assombrado.
Passaram a noite toda em desespero. Foram encontrá-lo depois das oito horas, desmaiado numa raiz de um bacurizeiro na Matinha, já perto da Ilha Grande. Foi levado para casa na rede. Indagado sobre as causas do ocorrido, disse apenas que desde que tinha saído da casa de Aniceto, depois do jogo de baralho e avistado um caixão, aproximando-se dele para mirar dentro, não se lembrava de nada. Levou três dias e três noites com febre e calafrio. Foi bento (benzido, no entender de Cachopa) três vezes por Maria Castro. Desde esse dia, ninguém passava mais nessa encruzilhada sem um temor horrível de assombração.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O REFASTOLO

 Dino de Alcântara

Toda sociedade se constrói sobre mitos e lendas. Daí resulta sua cultura, sua evolução, sua civilização. Foi assim com os povos antigos, Egípcios, Gregos, Judeus, entre outros. Por mais primitiva que seja uma tribo, um povoado, um grupo social, há uma série de histórias (não comprovadas pela ciência) que circulam de forma oral entre os integrantes de grupo.
Moisés, séculos antes da Era Cristã, se debruçou sobre uma infinidades de mitos para construir a história de um povo. Sabia, do alto de sua sapiência, que não se constrói um povo sem história, e a história precisa estar alicerçada nos mitos. Da mesma forma, Virgílio, na Roma antiga, construiu, sobre um mito, a história e a cultura do povo romano.
No Cujupe, três povos (índio, branco e negro) construíram uma infinidade de histórias, lendas, mitos. Uma dessas narrativas miraculosas é a do Refastolo.

Em idos de 1939, numa noite com um pingo de lua no céu, Zé Baé, saiu do Bom-que-dói em direção à casa de Cabeça Gorda. Era dia de uma ladainha, com direito a chocolate, bolo de tapioca, café, etc. Quando contornou a curva do caminho perto da casa de Nunilha, viu um vulto sair de trás de uma touceira de marajazeiro. Escuro, mas viu que se tratava de um bicho do tamanho de um gato. Realmente era um felino. Passou, cruzando o caminho, bem em frente de Zé Baé. Mais adiante, quase perto da Mangueira de Cheiro, plantada ainda no tempo de Paulo Costa, um cachorro cruzou o caminho numa direção contrário ao que o gato tinha atravessado. Deu para olhar bem a cara do bicho. Não latiu, não rosnou, nada. Zé Baé ficou imóvel, sem saber de quem era esse cachorro. Apressou o passo. Quando passou pela tapera de Vicente, um bode passou por ele, entrando no mato. Os cabelos arrepiaram, quis correr, mas as pernas ficaram meio bambas. Fez o pelo sinal, quis gritar, mas ficou com mais medo. Não deu trinta passadas, um garrote cruzou o caminho de novo. Todo branco. Nesse momento, Zé Baé se lembrou do famoso Refastolo. Não havia dúvida: era o diabo do bicho. A hora em que ficasse do tamanho de um boi feito, mataria o pobre homem e o levaria para as profundezas da escuridão. Retirou forças não se sabe de onde e saiu numa carreira que nem na época de garoto, fugindo de um boi de verdade, chegou a atingir tamanha velocidade. Felizmente, na casa de Ludegero, viu cachorro latindo e foi gritando: “Acode, cupade!” E invadiu o terreiro, indo pelo quintal. Ludegero abriu a mençaba da “cambra” que dava para a cozinha e avistou um assombrado Zé Baé. Parecia que tinha visto uma Curacanga. “Pior, cumpade! Tem bicho solto por aí. Doido é quem sai agora porta fora!”. Depois de uma conversa com o compadre, Ludegero armou uma rede na cozinha para Baé passar a noite. Esqueceu Ladainha, bolo, chocolate, café, reza, tudo. Nessa noite, quase toda com medo, embalando a rede para chamar o sono, mergulhou algumas vezes num mundo dos anjos. Numa dessas “viagens”, sonhou com um boi que vinha desembestado para matá-lo.