terça-feira, 18 de abril de 2017

O SAPO QUE ERA PEDRA



  Dino de Alcântara
 
 
Não se sabe quem foi o primeiro morador do Cujupe a trocar as mensabas por portas de madeira, embora Mundica tenha atestado que fora o velho Manoel Cavalcante, porém não há a menor dúvida sobre quem teria inventado a mania (hoje muito comum) de colocar uma pedra na extremidade inferior contrária à dobradiça para evitar que o vento, tão comum nos meses de julho a novembro, estrunchasse o dormente do portal. Trata-se de Chico Cavalcante. Sempre exagerado com os objetos, trouxe uma pedra de quase dois quilos do Marindiua para exercer esse ofício. E deu certo. Durante meses, a pedra cumpriu, durante o dia, a função para a qual fora determinada. Porém, numa bela noite, em que não fosse uma coruja no bacurizeiro defronte da casa, a noite estaria completamente em silêncio, a pedra descansando da dura jornada do dia, em que com os ventos fortes vindos do Porto Grande, teve que segurar com todo o peso de sua estrutura, a porta, que parecia enlouquecida para estrondar no portal, fechando como se estivesse fugindo de uma curacanga, foi confundida com um enorme sapo cururu. Chico Cavalcante havia pouco sonhado com visagens, ora uma mãe-d’água, ora uma mulher de branco vindo do Poço da Baixa, levantou para aliviar a bexiga no pé da jaqueira. Ao passar do quarto para a copa, deu de cara, à meia luz de uma lamparina, com a pedra. Na sua vista, turva pelo sono e pelos sonhos, era um sapo que estava bem perto da porta que dava para a cozinha. Não teve dúvidas. Abriu bem devagar a porta, para não espantar o anfíbio, escancarando-a. Em seguida, tomou uma boa distância, como se fosse bater um pênalti no Estádio Nhozinho Santos contra o time do Vitória do Mar. Mediu bem o tamanho do “sapo” e correu para ele, dando um violento chute na pedra, que a arremessou por sobre o jirau, indo cair a uma distância de quase dez metros. No momento em que a pedra caiu no chão, tudo ficou claro: não era sapo, era a maldita pedra trazida do Marindiua. Uma dor chegou ao cérebro com uma força capaz de derrubar um boi de trezentos quilos. Ao alumiar o dedão do pé direito, percebeu que a unha tinha ido embora junto com a pedra. Tentou em vão, com a velha lamparina de querosene, encontrar a bendita unha. Encontrou a maldita pedra somente. Pegou-a com a mão e atirou bem longe. Voltou para a casa, amarrou no dedo grande um pano que encontrou por ali e foi dormir. Naquele resto de noite, não pensou em outra coisa, que não fosse essa maldita pedra.

 

segunda-feira, 17 de abril de 2017

ZIQUIÉ, MARIANO E A JUÇARA


Dino de Alcântara

Ziquié (no batistério Ezequiel Pereira) acordou com uma vontade danada de tomar um bom vinho de juçara. Paiaco, que tinha passado boca da noite pela porta da rua, tinha dito que estava “à fulote” na Baixa Grande. Pelas seis da manhã, cortou uma pindova e trançou um cofo, mais ou menos de meio-alqueire, dando para uns dois ou três cachos de juçara. Banda de oito horas, já estavam o velho Ziquié e o seu único filho (uma vez que Teodora tinha falecido): Mariano, ou Maroca para íntimos, na Baixa Grande. Ziquié olhou para cima e viu uma quantidade enorme de cachos cinzentos. Deu água na boca. Imaginou-se empapado do precioso líquido. “Hoje eu tomo um alguidar inteiro!” Com a faca afiada, cortou uma boa tipoia e trançou-a. Depois de pronta, deu a Mariano. 
- Bora, macho. Tripa. 
Maroca não entendeu direito. Mas como Ziquié insistisse, o filho foi obrigado a dizer que nunca havia subido numa goiabeira, que dirá numa juçareira. Ziqué olhou para o alto, viu os cachos, cuspiu um catarro cinzento, fruto do fumo caipora, botou a mão direita na cintura, pensou um pouco e resmungou:
– Eu num tripo, tu não tripa, quem vai tripar?
Como Mariano esperava uma decisão do velho, apenas baixou a cabeça, talvez para contrair um risinho seco.
Ziquié lançou fora a tipoia, pegou o cofo enfiou no pau de carga e rumou pra casa.

Naquele dia, os três, Ziquié, Mundica e Maroca, entraram no escaldado com camarão seco. 

quinta-feira, 13 de abril de 2017

O CAÇADOR, O CURUPIRA E O PORCO-DO-MATO

Numa sexta-feira de agosto de 19.., Ludegero preparou sua espingarda e saiu para a Ilha Grande, atrás de uma boa caça. Sua esposa até lembrou que era um dia perigoso para sair assim de noite, mas o pobre homem retrucou, dizendo que no Apicum da Ilha Grande havia muitos rastros de porcos, e dos grandes. E assim, já quase com o sol se escondendo no Marindiua, Ludegero rumou para a caçada. Já planejava mandar preparar um vinho de coco para botar no cozido.
Quando chegou ao ponto em que deveria esperar, examinou bem o lugar, viu que os porcos estavam em grande quantidade. Subiu no mutá (espécie de armação em que o caçador fica à espreita das presas) e esperou.
Aqui e ali uma imagem percorria o olhar do homem. Vez ou outra, precisava mudar o rumo do olhar, para que o cabelo não se arrepiasse.
O tempo passava como se cada minuto demorasse cerca de duzentos segundos.
Até que, pela posição da lua, entre onze e meia-noite, passou um bando de porcos numa embalada, correndo como se estivessem fugindo de uma onça.
Não teve mais dúvida. O momento era este. Mirou no porco da frente, por duas razões: era maior e parecia mais gordo. Um disparo se ouviu no passagem, cerca trezentos metros de onde estava o nosso caçador.  O porco caiu bem à frente, cerca de uns vinte passos.
Ludegero ia descer para buscar a caça e rumar para o Itapeua, mas foi surpreendido com uma cena que o deixou paralisado: um vulto de gente, pequena, mas gente, algo em torno de 1m10.
O homenzinho foi até a árvore em que estava o mutá. Longa conversa (em que o narrador, por não ser onisciente, não pôde ouvir, nem entender patavina). Dez minutos depois, um Ludegero triste, acabrunhado, visivelmente derrotado, pôs a espingarda no ombro e cambou para casa.
Entrou em casa quase uma hora da madrugada, sem dizer nada à esposa. De manhã bem cedo, disse que fossem buscar o porco na Ilha Grande. Foleiro e Zé Domingo foram encarregados de buscar a presa. Durante o almoço, enquanto todos saboreavam um cozidão no vinho de coco, Ludegero mastigava chibé com camarão seco.
Nunca mais comeu porco-do-mato nem foi mais caçar.

No leito da morte, o compadre Feliciano bem que tentou arrancar o que tinha acontecido naquela famosa sexta-feira de agosto, mas Ludegero fez sinal que não poderia contar. E levou para o túmulo o que seria a única conversa entre um homem e um curupira na Ilha Grande.