Dino de Alcântara
Ninguém sabe explicar o porquê de tamanha irritação das pessoas no trânsito ou viagens, seja de carro, de avião ou de barco. O estresse parece atacar as pessoas de tal maneira, que o viajante (ou o sujeito que dirige nas ruas das grandes cidades e – claro – nas rodovias do Maranhão) tem a sensação de que vai ter um enfarto.
Dr. Irineu, magistrado conhecido em São Luís pela seriedade com que se dirigia às pessoas, embora tivesse um coração justo, deve ter tido essa sensação, quando chegou ao Porto do Cujupe, vindo de Belém, e descobriu que o seu ferry já tinha saído. Havia comprado passagem para a embarcação de 15h30, mas, com as estradas em petição de miséria, chegou somente às 16h. E pior: foi avisado que deveria entrar na fila de espera. Talvez viajasse no ferry de 21h30.
Voltou ao final da fila furioso com todos, inclusive com Brandão.
Estacionou o carro, saiu do veículo e sentou num mocho numa quitanda. Esperou bem uma meia hora, e nada de andar um metro. Foi aí que teve a lembrança feliz de que poderia ir tomar um banho e tomar um café e, quem sabe, até um descanso numa rede, na casa de França. Sim, senhor. Vou lá, pedir um banho e um café.
Foi. No momento em que passava na porta da casa de Papa-Tudo, passou uma caçamba cheia de terra. A poeira lançou quase dois quilos de terra no ar. A roupa do juiz deve ter absorvido algumas dezenas de grama da poeira. Os olhos receberam ao menos um grama cada. Ia mandar um palavrão, mas conteve. O sangue subiu-lhe a fronte. Sentiu uma ira incontrolável.
Subiu a ladeira. Outra caçamba cheia de terra fez o mesmo, só que com menor intensidade. Arrependeu de ter saído do carro.
Ao chegar à casa de França, dá com Zabé no terraço, molhando umas plantinhas de vaso. Zabé, o narrador sabe, o leitor não, era daquelas mulheres com a língua maior que o mundo. Pobre, mas com um ar de quem é superior ao outros. E por quê?... Por ser do litoral, em contraposição aos que moravam na baixada, a quem chamava de bando de morto de fome, que nunca viram comida.
Ela arregala os olhos para a visita, como quem mira um pobre que vem pedir água.
– Boa tarde, moça.
Ela espichou os beiços como quem quer saber o que quer.
– França está em casa?
– E quem é que quer falar com ela?
– Eu. Tu tá vendo outra pessoa aqui?
– Chiba, égua! E tu não tem nome?
– Pequena, faz o favor de chamar França.
Zabé, braba, berrou para o quintal:
– Comadre, tem um fulustreco aqui, querendo falar com a senhora!
França, lá do quintal, apenas entendeu que tinha visita. E disse um já vou...
O magistrado parado, com vontade de dizer umas poucas e boas para Zabé.
– Cadê ela?
– Tá vindo, siô... Ah... tá apressado?]
– Tu não acha que já fez muitas perguntas não, hein?
– A boca é minha, e tu responde se quiser...
E ia dar um baile de esculhambação, mas Zabé foi salva pela anfitriã, que chegou, mandando que a visita entrasse.
Daí a meia hora, depois de um banho vigoroso, o Dr. Irineu, abancado numa cadeira, tinha defronte de si uma boa xícara de café, com beiju, juçara e farinha d’água.
Zabé se aproximou:
– Quer dizer que tu é juiz no duro mesmo?
Ele assentiu com a cabeça, confirmando.
– Juiz de verdade mesmo ou de jogo de bola no Estádio Municipal?
Ele sorriu da alternativa. Era a primeira vez no dia que sorria.
– Tu é delegada, pequena?
– Antes fosse, que eu te tocava no xadrez com dois chutes no rabo!
Novo riso, agora mais aberto.
Ela se sentou. Mirou bem a cara do magistrado, botou o dedo quase no nariz:
– Olha... da próxima vez tu reponde teu nome, cumuchama.
E ganhou a rua.
No dia seguinte, no comércio de Carrinho, Zabé dizia para Lapichal:
– Infilizmente eu tava na casa de comadre França... Senão, eu voava na goela dele.

