domingo, 21 de agosto de 2022

UMA LUZ PARA A VIDA – CONTO AFRICANO

 Dino de Alcântara

 

À Mundica, Didi, com saudosa lembrança.


 Numa noite de céu estrelado, lua cheia, ventos soprando forte no Cujupe, Raimunda Andressa Pereira Cavalcante, ou simplesmente Mundica de Ziquié, ou ainda Didi para as crianças, depois de uma boa xícara de café, que não dispensava depois do jantar, sentou-se num banco e começou a nos contar uma de suas inesquecíveis histórias. Ela, nossa velha e boa Didi chamava de O Velho e os Três Filhos. E iniciou a narrativa. Nós, ouvintes, na maioria crianças, éramos um só ouvido. Antônio sentou-se num mocho e França abancou-se entre Maroca e Irene. Ambos com medo de que viesse uma história de defunto.

Mas não era. Contou-nos que essa história tinha sido contada pela sua mãe, dona Ângela, nascida ainda no tempo do Império, ainda quando ela, Didi, e os três irmãos eram ainda crianças. Dona Ângela teria ouvido de uma escravizada, que sabia muitas histórias da África.

Apresentou-nos, então, a figura central da narrativa. Era um velho, de quase oitenta anos, já pressentindo a morte chegar.

Danso, o velho, tinha três filhos. Viúvo, vivia numa casinha simples, mas com certo conforto, fruto de anos e anos de muito trabalho no campo.

Ouvindo da boca de outro ancião do lugar que, se não deixasse a sua casa e as suas terras para um dos filhos, os três brigariam e até se matariam pela posse dos bens, chamou-os ao quarto em que vivia, sempre deitado numa cama, e disse aos três:

 – Meus filhos, estou muito velho e sei que, em breve, vou morrer. E, segundo um anjo que apareceu num sonho para mim, ontem à noite, eu devo deixar esta casa e as terras para um de vocês, não para os três, caso contrário, haverá muitas brigas e mortes.

Os três balançaram a cabeça afirmativamente, como a concordar com a decisão do pai.

– Então, continuou o velho, dou a cada um de vocês uma missão:

Os três ficaram bem atentos.

– Quero que me tragam alguma coisa que encha todo esse quarto ou que me faça feliz. Vocês têm até o final do dia para me trazer o que julgarem perfeito. Peguem cada um três moedas dentro do baú.

Logo os três, com as moedas no bolso, pediram a bênção e saíram em busca de um objeto mágico que pudesse encher todo o quarto ou ainda fazer o velho feliz.

O mais velho correu para a cidade e entrou numa venda atrás de algum objeto de valor.

O filho do meio correu para uma aldeia vizinha atrás de algo que surpreendesse o velho.

O mais novo, sem muita experiência, percorreu muitas e muitas aldeias, mas sempre descartando tudo que encontrava pela frente.

O mais velho, sem gastar muito tempo, achou que o pai estava ficando sem juízo. Então, gastou o dinheiro que trouxe e, na volta, encheu vários sacos de capim. E pensou: isso vai encher todo o quarto.

O filho do meio pensou a mesma coisa. O pai devia estar gagá. Podia trazer qualquer coisa, que ele nem enxergaria mais. Gastou também o dinheiro e, na volta, encheu vários sacos de folhas de árvore.   

O filho mais novo andou, andou por várias aldeias, consultando os mais velhos, para saber o que levar para o seu pai, que já estava à beira da morte. Já quase de noite, com receio de que nada fosse encontrar para encher o quarto do pai ou fazê-lo feliz, encontrou um homem que estava lendo um livro na porta de uma casinha. Parou e perguntou ao senhor, que levantou a vista para ver quem era o visitante.

– Meu senhor, estou vindo de muito longe para encontrar alguma coisa que faça o meu pai feliz.

– Vamos sentar. E me conte o que deseja realmente.

O jovem contou ao homem toda a história até a chegada àquele lugar.

Em seguida, o mestre deu ao rapaz um objeto dentro de uma caixa de madeira e disse:

– Leve esse objeto para o seu pai. Além de encher o quarto inteiro, certamente o fará feliz.

Ao chegar em casa, já tarde, os irmãos nem mais o aguardavam, certos de que algum animal o havia matado. 

Então o pai os chamou e pediu que cada um mostrasse o que havia trazido.

O filho mais velho abriu os sacos e espalhou capim no quarto, mas não conseguiu encher o aposento.

O filho do meio fez a mesma coisa com os seus sacos, abrindo as folhas, mas não conseguiu encher o espaço.

Foi a vez do filho mais novo. Este, humildemente, sentou na cabeceira da cama e entregou a sua caixinha ao pai, além das três moedas que havia levado.

O  velho indagou o que era.

Então o filho abriu a caixa e tirou de dentro um livro.

Os outros filhos riram da ingenuidade do mais novo.

– Se o que nós trouxemos não conseguiu encher o quarto, que dirá esse pequeno livro. Esse mesmo que nada fará.

E riram à solta.

O pai, depois de abrir o livro, pediu ao filho:

– Você é o único que aprendeu a ler. Então me diz o que tem nesse livro.

O filho mais novo abriu o livro e começou a ler. Era um livro de histórias de homens e mulheres valentes. Cada história fazia o velho imaginar. Eram narrativas de lutas, viagens, fortunas, mulheres guerreiras, etc. Cada palavra lida enchia os quatro cantos do quarto. Dentro dele, os três ouvintes não interrompiam a leitura, não indagavam nada, apenas mergulhavam nas histórias. 

      Ao terminar a terceira história, o velho não teve a menor dúvida. O filho mais novo era o único que havia trazido algo que ao mesmo tempo enchera o quarto e o fizera feliz.

No dia seguinte, pela manhã, chamou os três filhos e revelou a sua decisão. Daria a sua casa e as terras ao filho mais novo.

Mas o filho mais novo pediu licença ao pai e disse:

– Meu pai, eu sei que a sua palavra tem que ser obedecida, mas eu queria fazer um pedido.

– Pois faça meu filho.

– As nossas terras são pequenas, mas podemos dividir em três partes. Essa casa já está velha, então podemos fazer três, uma para cada filho seu. E assim podemos viver juntos, um ajudando os outros.

O pai pensou e concordou com o filho, apenas perguntando:

– Tá certo, filho. Mas você acha que os outros fariam isso por você?

Os mais velhos baixaram a cabeça, com vergonha. Certamente não fariam isso nunca.

– Eu acho que não, mas eu farei isso por eles.

E assim, depois de algumas noites, o velho se despediu da vida, sendo sepultado no cemitério da aldeia.

Os três irmãos, sob a liderança do mais novo, tentaram então, com muito trabalho e muitas dificuldades, viver em sociedade.

 

FIM

 

sexta-feira, 18 de março de 2022

BOCA DE FORNO

 Dino de Alcântara

 


Nas horas calmas da noite, geralmente com a Lua banhando os caminhos, os terreiros, as portas de rua, os quintais, as folhas das árvores, etc., as crianças do Cujupe (antigamente) se reuniam para brincar. Uma das mais queridas brincadeiras era Boca de Forno.

Encontravam-se Arinaldo, França, Antônio, Cacá, João Baralhada, Teresa de Paiaco, Irene, Teresa de Quinca, Curica, Nildes, Radiado, Nivaldo, Lapichal e tantas outras crianças, além de mim, claro, figura sempre presente. Não se usava ainda o nome adolescente. Ou era adulto ou era criança. As brincadeiras ocorriam quase sempre na porta da rua da casa de Mariano.

Uma das crianças, depois de uma discussão, às vezes mais acalorada, em que alguém precisava fazer o costumeiro “deixa-disso”, se tornava o comandante ou o senhor. As outras eram os brincantes ou meros participantes, condenados a sair correndo para buscar o que o líder mandasse. A ordem consistia em achar um determinado objeto: uma folha de mangueira cajá, um tucum, uma folha de limoeiro de Mariano, um fruto de ariri, um bacuri, uma manga, uma pedra branca, uma pedra de carvão, etc. O primeiro que chegasse com o objeto seria promovido a comandante, enquanto os outros (tanto os que haviam conseguido ou não) continuavam sendo apenas comandados, além de levar um bolo.

 

O diálogo era um pequeno teatrinho:

 

COMANDANTE – Boca de Forno!

PARTICIPANTES – Jacarandá!

COMANDANTE – Se eu mandar?

PARTICIPANTES – Vou.

COMANDANTE – Se não for?

PARTICIPANTES – Pego um bolo.

COMANDANTE – Quero que me tragam uma folha de mangueira.

 

Mal o comandante acabava de ordenar, os participantes saíam na carreira atrás do objeto tão desejado.

 

  

Minutos depois, chegava alguém esbaforido com o objeto, que era entregue ao comandante. Este examinava e validava. Aos outros, restava o bolo, além de continuarem sendo meros participantes.

E a brincadeira continuava, para alegria de todos nós.

Que magia não havia nessas brincadeiras, de tantas alegrias. Horas e horas, depois do jantar, com o luar clareando tudo, a gritaria e o corre-corre, a porfia, etc. nos tornavam as pessoas mais felizes do mundo. Como disse o poeta Casimiro de Abreu:

 

Oh! Que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,

Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais!

 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Despedida de uma velha

    Quando alguém que não conhecemos morre, sentimos um certo peso. Quando é um conhecido, sentimos que se esvai uma parte nossa. A nossa vida é muito frágil, cheia de percalços e desilusões. Mas dentre todas essas problemáticas, nós encontramos afeto, amor. Amor esse de se observar uma velha quebrando coco e os debulhando para jogar às galinhas, sempre tendo o cuidado de deixar um punhado para uma criança que a chamava de vó só pelo fato de senti-la como.

    Entre idas e vindas ao doce e maravilhoso lugar, uma terra encantada pertencente ao município de Alcântara, o laço entre esta criança e a senhora foram crescendo. Conversas sobre roça, sobre os netos e netas dela e também a amizade que foi se formando com os filhos dela, principalmente um com nome de peixe (que infelizmente já está ao seu lado), ou de um baixinho que se atrapalha quando fica nervoso ao falar. O amor cresceu.

    O "neto" cresceu, já não lhe visitava tanto quanto antes, preferia ficar deitado na rede ou trilhando pelos cantos do perfeito povoado. Quando se vira adolescente, acabamos descobrindo coisas e sentimentos diferentes, não que deixamos de amar ou gostar, mas acabamos deixando de lado o que já foi e continua sendo importante.

    O tempo passou, você envelheceu. Nós também, de certa forma, ficamos mais maduros. Volta-se a prestar atenção novamente naquilo que julgamos, quem sabe, talvez já inexistente. Seu lugar passa a ser uma simples rede, e aquelas crianças que um dia você amamentou e deu comida na boca, são aqueles que inverteram a situação. É a vez deles, dele. Algumas pessoas começam a considerar um peso, sentir como se o mundo estivesse às costas. Mas alguém batalhou até o fim, o seu.

    Algumas mortes rápidas são dolorosas, mortes que não esperamos. Vontade de pegar na mão de um Tralhoto. Mas quando alguém já morreu tem algum tempo, mas apenas o seu coração continua a pulsar, infelizmente, chegou a hora dessa pessoa repousar.

    

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

DOIS IRMÃOS NA ILHA OU BARÃO DORME NO PONTO

 

 


Dino de Alcântara

Dois irmãos,  Barão e Moringa, moradores do Cujupe, combinaram viajar para São Luís juntos. Pegaram o ferry das 7h30 e atravessaram a Baía de São Marcos, que algumas cabeças pensantes do Maranhão chamam de golfo, e desembarcaram na Ponta da Espera às 9h. 

 

Tomaram um micro-ônibus e foram até o Anel Viário. No terminal de ônibus, ainda da época do governador Luiz Rocha, tomaram o Santa Rosa, por acharem ser mais rápido que o do São Francisco, e sentaram na cadeira bem atrás do cobrador. 

 

Barão, que havia dormido pouco na noite anterior, sentiu a presença do sono por dois longos bocejos. Moringa, bem falante, não costumava tirar sonecas nem em viagens longas, que dirá numa viagem de 20 minutos, como essa que ia até o retorno do São Francisco.  Barão segurou o sono até a descida da ladeira da Praça Gonçalves Dias para a Maria Aragão. Mas, ao cruzar a antiga Reffsa, já estava a sono largo. 

 

Moringa só olhou para o cobrador, que fez um aceno, rindo.  Quando o ônibus chegou ao Retorno do São Francisco, Moringa, silenciosamente, fez sinal para o motorista parar e desceu sem fazer o menor barulho. Ainda olhou para o cobrador e pediu silêncio. O cobrador bem que quis gritar e chamar Barão, mas acabou entrando na brincadeira e deixou o pobre passageiro descer bem longe e caminhar no sol quente. Moringa se dirigiu à casa de um irmão nas proximidades da Mirante. 

 


O cobrador, ou fez de propósito, ou ficou com receio de chamar o passageiro (Barão) e levar um bogue no meio da cara, fechou-se em copas. Barão entrou no sono mais profundo que um homem pode conseguir. Dormiu, dormiu, roncava, como se estivesse em coma. Nada tirava Barão do mundo dos sonhos; nem os solavancos que o veículo dava. Passou pelo Tropical, avançou pelo Vinhais, passou em frente ao São Domingos, Angelim, Rio Anil Shopping, atravessou a Avenida São Luís Rei de França e nada de Barão acordar. O Santa Rosa  entrou na Avenida dos Holandeses, foi até o retorno do SESC do Olho-d’Água e rumou para última parada da linha. Ao descer, o cobrador foi obrigado a chamar Barão. Teve certo esforço, mas conseguiu tirá-lo do sono rem

 

Barão deu um salto da cadeira, olhou para os lados, não viu o irmão, perguntou onde estava. O cobrador disse que no final da linha do ônibus. Barão perguntou onde era “esse raio”. O cobrador disse que era para as bandas do Olho-d’Água. 

 


“Tu tá doido ou tá broco? Eu ia descer no São Francisco.” “Mas o senhor dormiu e passou do ponto. E o seu colega que nem lhe chamou?” “Colega, não. Irmão. Ele é meu irmão. Quer dizer, irmão do cão!”. Barão ainda bateu boca com o cobrador, mas o motorista se meteu na confusão, acalmando os ânimos. Propôs colocar o passageiro no ônibus que estava saindo para o centro, com a ordem expressa que avisasse, chamasse se fosse preciso, na hora em que passassem pelo Retorno do São Francisco.

Até hoje, passados quase 12 meses desse ocorrido, Barão nunca conseguiu dizer uma palavra áspera ao irmão, simplesmente porque não consegue dirigir-lhe um leve oi, a não ser que “peça perdão de joelhos e apanhe duas lapadas de cipó mexila para aprender ser gente!”